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Outros Cadernos de Saramago

Outros Cadernos de Saramago

27 Out, 2011

"Claraboia" XXVII

Falecia-lhe a coragem. Quase a passar a soleira da porta para nunca mais voltar, alguma coisa o prendia. Da sua casa fugira o amor. Não odiava a mulher, mas estava fatigado de infelicidade. Tudo tem um limite: pode suportar-se a infelicidade até aqui, mas não até ali. E, no entanto, não partia.
26 Out, 2011

"Claraboia" XXVI

Seguindo no ar o movimento envolvente do fumo que subia, Abel ouvia as histórias que lhe contavam a cómoda e a mesa, as cadeiras e o espelho. E também as cortinas da janela. Não eram histórias com princípio, meio e fim, mas um fluir doce de imagens, a linguagem das formas e das cores que deixam uma impressão de paz e serenidade.
25 Out, 2011

"Claraboia" XXV

Só esta! Carmen teve vontade de chorar. Via nesse momento que estivera esperando carta de Manolo, não só dele, mas principalmente dele. E a carta não vinha. Com uma lentidão que intrigou o carteiro, fechou a porta. Que loucura, a sua! Não pensara! Não estava nos seus cinco sentidos quando escrevera ao primo! Ocupada com estes pensamentos já esquecera que tinha nas mãos a carta da mãe. Mas sentiu nos dedos, de súbito, o contacto do papel. Murmurou, em galego:– Miña nai...
24 Out, 2011

"Claraboia" XXIV

Mas não saiu de casa. Fixara-se nele a ideia de que era o responsável pela recaída, porque só depois das palavras que dissera ao filho a doença se agravara. A sua presença era como uma penitência, inútil como todas as penitências e apenas compreensível porque era voluntária.
23 Out, 2011

"Claraboia" XXIII

De todas as mulheres, uma só desdenhava: a sua. Justina era, para si, um ser assexuado, sem necessidades nem desejos. Quando ela, na cama, no acaso dos movimentos, lhe tocava, afastava-se com repugnância, incomodado pela sua magreza, pelos seus ossos agudos, pela pele excessivamente seca, quase pergaminhada. «Isto não é uma mulher, é uma múmia», pensava.
21 Out, 2011

"Claraboia" XXI

A voz de Mariana era tão gorda como a sua dona. E era tão franca e bondosa como os olhos dela. Estava longe de pensar que dissera um gracejo, mas o marido sorriu com todas as rugas da cara e os poucos dentes que lhe restavam. Recebeu as calças, vestiu-as sob o olhar complacente da mulher e ficou satisfeito, agora que o vestuário lhe tornava o corpo mais proporcionado e regular.
20 Out, 2011

"Claraboia" XX

Vivia por conta dele há três anos. Conhecia-lhe os tiques, as idiossincrasias, os movimentos. E, destes, o que mais receava que ele fizesse era o de, ainda sentado, desabotoar ao mesmo tempo as duas alças dos suspensórios. fazia-o sempre ao mesmo tempo. Lídia sabia o que isso significava. Agora estava tranquila: Paulino Morais fumava e, enquanto a cigarrilha durasse, as alças não deixariam os botões.
19 Out, 2011

"Claraboia" XIX

Os mesmos lábios podem beijar de diversas maneiras e Lídia conhecia-as todas. O beijo apaixonado, o beijo que não é apenas lábios mas também língua e dentes, era reservado para as grandes ocasiões. Nos últimos dias fizera largo uso dele, vendo que Paulino se afastava ou, pelo menos, o parecia.
18 Out, 2011

"Claraboia" XVIII

Quando a fita acabou, seguiu uma mulher. Na rua, perdeu-a de vista e não se importou. Ficou parado no passeio, a sorrir para o monumento aos Restauradores. Pensou que com um simples pulo ficaria em cima da pirâmide, mas não deu o pulo. Esteve mais de dez minutos a olhar o sinaleiro e a ouvir o apito. Achava tudo divertido, e via as pessoas e as coisas como se as estivesse vendo pela primeira vez, como se tivesse recuperado a vista após muitos anos de cegueira.