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Outros Cadernos de Saramago

Outros Cadernos de Saramago

Isto a que chamam o meu estilo assenta na grande admiração e respeito que tenho pela língua que foi falada em Portugal nos séculos XVI e XVII. Abrimos os Sermões do Padre António Vieira e verificamos que há em tudo o que escreveu uma língua cheia de sabor e de ritmo, como se isso não fosse exterior à língua, mas lhe fosse intrínseco.

Nós não sabemos ao certo como se falava na época, mas sabemos como se escrevia. A língua então era um fluxo ininterrupto. Admitindo que possamos compará-la a um rio, sentimos que é como uma grande massa de água que desliza com peso, com brilho, com ritmo, mesmo que, por vezes, o seu curso seja interrompido por cataratas.

Chegam dias de férias, uma boa ocasião para entrar nesta água, nesta língua escrita pelo Padre Vieira. Não aconselho nada a ninguém, mas digo que vou mergulhar na melhor prosa e vou desaparecer estes dias. Alguém quer acompanhar-me?

Caderno 2, 8 de abril de 2009

Acabo de ver nos noticiários da televisão manifestações de mulheres em todo o mundo e pergunto-me uma vez mais que desgraçado planeta é este em que ainda metade da população tem que sair à rua para reivindicar o que para todos já deveria ser óbvio...

Chegam-me informações oficiais de solenes insituições que dizem que pelo mesmo trabalho a mulher cobra dezasseis por cento menos, e seguramente esta cifra está falseada para evitar a vergonha de uma diferença ainda maior. Dizem que os conselhos de administração funcionam melhor quando são compostos por mulheres, mas os governos não se atrevem a recomendar que quarenta por cento, já não digamos cinquenta, sejam compostos por mulheres, ainda que, quando chega o colapso, como na Islândia, chamem mulheres para dirigir a vida pública e a banca. Dizem que para evitar a corrupção na organização do trân- sito em Lima vão colocar guardas mulheres, porque se comprovou que nem se deixam subornar nem pedem coimas. Sabemos que a sociedade não funcionaria sem o trabalho das mulheres, e que sem a conversação das mulheres, como escrevi há algum tempo, o planeta sairia da sua órbita, nem a casa nem quem nelas habita teriam a qualidade humana que as mulheres colocam, enquanto os homens passam sem ver, ou, vendo, não se dão conta de que isto é coisa de dois e que o modelo masculino já não serve. Continuo vendo manifestações de mulheres na rua. Elas sabem o que querem, isto é, não ser humilhadas, coisificadas, desprezadas, assassinadas. Querem ser avaliadas pelo seu trabalho e não pelo acidental de cada dia.

Dizem que as minhas melhores personagens são mulheres e creio que têm razão. Às vezes penso que as mulheres que descrevi são propostas que eu mesmo quereria seguir. Talvez sejam só exemplos, talvez não existam, mas de uma coisa estou seguro: com elas o caos não se teria instalado neste mundo porque sempre conheceram a dimensão do humano.

José Saramago, O Caderno I, 8 de março de 2009