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Outros Cadernos de Saramago

Outros Cadernos de Saramago

30 Nov, 2008

Livraria Cultura

A última imagem que levamos do Brasil é a de uma bonita livraria, uma catedral de livros, moderna, eficaz, bela. É a Livraria Cultura, está no Conjunto Nacional. É uma livraria para comprar livros, claro, mas também para desfrutar do espectáculo impressionante de tantos títulos organizados de uma forma tão atractiva, como se não fosse um armazém, como se de uma obra de arte se tratasse. A Livraria Cultura é uma obra de arte.

O meu editor, Luis Schwarcz, da Companhia das Letras, sabia que me ia emocionar este portento, por isso me levou. Também me tocou bastante a livraria da Companhia, ver estantes luminosas com obras de fundo, os clássicos de sempre expostos como outros fazem com as novidades. E todos juntos oferecidos ao leitor, que tem o difícil mas interessante dilema de não saber que escolher.
Boa saída de São Paulo. À noite, antes do jantar na casa de Tomie Ohtake fomos ver a exposição “A Consistência dos Sonhos”. Fomos os últimos das 700 pessoas que passaram ao longo do dia para ver a montagem que sobre este escritor fez a Fundação César Manrique, e que já esteve em Lanzarote e Lisboa. Fernando Gómez Aguilera pode estar contente: a sua obra, noutro continente, é igual de interessante e próxima, tão precisa como um relógio, tão bela como a Livraria Cultura. Às vezes as boas notícias amontoam-se. Damos fé delas.
28 Nov, 2008

Educação sexual

“A exploração sexual é um tema tão importante para a humanidade que não pode haver hipocrisia. É necessário convencer os pais do mundo inteiro de que a educação sexual em casa é tão importante como a comida na mesa. Se não ensinarmos educação sexual nas escolas, os nossos adolescentes aprenderão animalescamente nas ruas. É necessário acabar com a hipocrisia religiosa e isso vale para todas as religiões”.São palavras de Lula da Silva, presidente do Brasil, que subscrevo. Falava num congresso mundial, o terceiro que se realiza, que trata de enfrentar o problema da exploração sexual a que são submetidos crianças e adolescentes em todo o mundo. A rainha da Suécia fez um apelo para que se persiga a delinquência contra os jovens que se instalou na Internet. Ambos falaram de problemas graves, que afectam uma parte da sociedade e que faz estragos sobretudo entre a população infantil e adolescente nas zonas mais pobres do planeta, onde faltam escolas, o conceito de família simplesmente não existe e manda uma televisão que emite violência e sexo 24 horas por dia. Quem ouvirá as palavras sábias que se pronunciam no Congresso contra a Exploração Sexual?Enfim, queria falar da apresentação de A Viagem do Elefante em São Paulo, mas este assunto meteu-se no meio e tem prioridade. Deixemos o livro para amanhã.
27 Nov, 2008

Dia vivido

Continuamos no Brasil, Pilar e eu, e comovidos pela tragédia de Santa Catarina, onde o número de mortos ou desaparecidos não deixa de aumentar, como as histórias humanas, de desolação e desesperança dos sobreviventes, que dali nos chegam. Cruzámo-nos com o presidente Lula, que ia visitar a zona da tragédia. Muito consolo tem que transportar para demonstrar que o Estado é útil. Consolo em palavras e em meios. Das duas coisas necessitamos, os humanos. Contam-nos que nas empresas, espontaneamente, se estão recolhendo fundos para ajudar os vitimados. Para quem, como nós, não vivemos directamente a tragédia, gestos como estes também nos consolam, nos fazem pensar que a jovem da editorial que se preocupa com a sorte de gente que não conhece é uma imagem possível do mundo.Esta tarde, na Academia Brasileira de Letras apresentei A Viagem do Elefante. Alberto da Costa e Silva disse na sua intervenção que todos somos bibliotecas, porque guardamos leituras no nosso interior como o melhor de nós mesmos. Tenho com Alberto uma antiga relação de amizade, e por ela, este académico, ex-presidente da Academia e ex-embaixador quis apresentar o meu livro como algo próprio. Antes tivemos uma reunião com os académicos, à qual assistiram amigos tão generosos como Cleonice Berardineli e Teresa Cristina Cerdeira da Silva, que não são académicas embora façam parte da aristocracia do espírito, essa que sim é necessária para a evolução da sociedade. Antes estivemos com Chico Buarque, que está a ponto de terminar um novo livro. Se for como Budapeste teremos obra. Chico, o cantor, o músico, o escritor, é um dos homens cabais que unem a qualidade do seu trabalho à sua condição de boa gente. Hoje o dia foi cumprido. Sem dúvida.

Acabamos de sair da conferência de imprensa de São Paulo, a colectiva, como dizem aqui.
Surpreende-me que vários jornalistas me tenham perguntado pela minha condição de blogueiro quando tínhamos atrás o anúncio de uma exposição estupenda, a que é organizada pela Fundação César Manrique no Instituto Tomie Ohtake, com os máximos representantes e patrocinadores, e com a apresentação de um novo livro à vista. Mas a muitos jornalistas interessava-lhes a minha decisão de escrever na “página infinita da Internet”. Será que, aqui, melhor dito, nos assemelhamos todos? É isto o mais parecido com o poder dos cidadãos? Somos mais companheiros quando escrevemos na Internet? Não tenho respostas, apenas constato as perguntas. E gosto de estar escrevendo aqui agora. Não sei se é mais democrático, sei que me sinto igual ao jovem de cabelo alvoroçado e óculos de aro, que com os seus vinte e poucos anos, me questionava. Seguramente para um blog.
24 Nov, 2008

Duas notícias

No Brasil, entre entrevista e entrevista, fico a conhecer duas notícias: uma, a má, a terrível, que o temporal que de vez em quando desaba sobre São Paulo para deixar, minutos de fúria depois, um céu limpo e a sensação de que não se passou nada, no sul causou pelo menos 59 mortos e deixou milhares de pessoas sem casa, sem um tecto onde dormir hoje, sem um lar onde seguir vivendo. Notícias destas, apesar de tantas vezes lidas, não podem deixar-nos indiferentes. Pelo contrário, cada vez que nos chega a voz de um novo descalabro da natureza aumenta a dor e a impaciência. E também a pergunta a que ninguém quer responder, embora saibamos que tem resposta: até quando viveremos, ou viverão os mais pobres, à mercê da chuva, do vento, da seca, quando sabemos que todos esses fenómenos têm solução numa organização humana da existência? Até quando olharemos para outro lado, como se o ser humano não fosse importante? Estas 59 pessoas que morreram em Santa Catarina, neste Brasil onde estou agora, não tinham que ter morrido de esta morte. E isto, sabemo-lo todos.

A outra notícia é o Prémio Nacional das Letras de Espanha para Juan Goytisolo, que hoje recordo em Lanzarote, com Monique, com Gómez Aguilera, falando de livros e do ofício de escrever. Monique já não está, não vê este prémio que, por fim, é atribuído a Goytisolo, tantos anos depois de termos lido o seu primeiro livro, então recém-publicado. Juan, um abraço e felicidades.
23 Nov, 2008

Gado

Não foi fácil chegar ao Brasil. Não foi fácil sequer sair do aeroporto. As instalações da Portela estão infestadas de pessoas de ambos os sexos que nos olham com desconfiança como se tivéssemos escrito na cara, a denunciar-nos, um historial de declarados ou potenciais terroristas. A estas pessoas chamam-lhes “seguranças”, o que é bastante contraditório porque, por experiência própria e tanto quanto pude perceber ao redor, os pobres viajantes não sentem nem sombra de segurança na sua presença. O primeiro problema tivemo-lo na inspecção da bagagem de mão. Ainda no rescaldo da doença de que padeci e de que felizmente me venho restabelecendo, devo tomar com regularidade, de duas em duas semanas, um medicamento que, em caso de passagem por um aeroporto, necessita ir acompanhado de declaração médica. Apresentámos essa declaração, carimbada e assinada como mandam os regulamentos, pensando que em menos de um minuto teríamos licença de seguir. Não sucedeu assim. O papel foi laboriosamente soletrado pela “segurança” (era uma mulher), que não achou melhor que chamar um superior, o qual leu a declaração de sobrolho carregado, talvez à espera de uma revelação que lhe fosse sugerida pelas entrelinhas. Começou então um jogo de empurra. A “segurança”, que já tinha, por duas ou três vezes, pronunciado esta frase inquietante: “Temos de verificar”, recebeu logo o apoio do seu chefe que as repetiu, não duas ou três vezes, mas cinco ou seis. O que havia para verificar estava ali diante dos olhos, um papel e um medicamento, não havia mais que ver. A discussão foi acesa e só terminou quando eu, impaciente, irritado, disse: “Pois se tem que verificar, verifique, e acabemos com isto”. O chefe abanou a cabeça e respondeu: “Já verifiquei, mas este frasco tem de ficar”. O frasco, se podemos dar tal nome a uma garrafinha de plástico com iogurte, foi juntar-se a outros perigosos explosivos antes apreendidos. Quando nos retirávamos não pude deixar de pensar que a segurança do aeroporto, por este andar, ainda acabará por ser entregue à benemérita corporação dos porteiros de discoteca…

O pior, porém, ainda estava para vir. Durante mais de meia hora, não sei quantas dezenas de passageiros estivemos apinhados, apertados como sardinhas em barrica, dentro do autocarro que deveria levar-nos ao avião. Mais de meia hora sem quase nos podermos mexer, com as portas abertas para que o ar frio da manhã pudesse circular à vontade. Sem uma explicação, sem uma palavra de desculpa. Fomos tratados como gado. Se o avião tivesse caído, bem se poderia dizer que havíamos sido levados ao matadouro.
20 Nov, 2008

No Brasil

De viagem para o Brasil, onde nos espera um programa tão carregado como um céu a ameaçar chuva. Confio no entanto que se arranje alguma aberta para que esta conversa não fique suspensa durante uma semana, que tanto irá durar a ausência. Já se sabe que, estando no Brasil, assunto não faltará, o problema, se o houver, estará na insuficiente disponibilidade de tempo. Veremos. Desejem-nos boa viagem, e, já agora, façam-nos o favor de cuidar do elefante enquanto andarmos por fora.

19 Nov, 2008

Todos os nomes

A dedicar exemplares de “A Viagem do Elefante” na editora durante uma boa parte da manhã. Na sua maioria irão ficar em Portugal como um recado para os amigos e companheiros de ofício dispersos nas lusitanas paragens, mas outros viajarão a terras distantes, como sejam o Brasil, a França, a Itália, a Espanha, a Hungria, a Roménia, a Suécia. Neste último caso, os destinatários foram Amadeu Batel, nosso compatriota e professor de literatura portuguesa na Universidade de Estocolmo, e o poeta e romancista Kjell Espmark, membro da Academia Sueca. Enquanto dedicava o livro para Espmark recordei o que ele nos contou, a Pilar e a mim, sobre os bastidores do prémio que me foi atribuído. O “Ensaio sobre a Cegueira”, já então traduzido ao sueco, havia causado boa impressão nos académicos, tão boa que ficou praticamente decidido entre eles que o Nobel desse ano, 1998, seria para mim. Acontece, porém, que no ano anterior tinha publicado outro livro, “Todos os Nomes”, o que, obviamente, em princípio, não deveria constituir obstáculo à decisão tomada, a não ser uma pergunta nascida dos escrúpulos dos meus juízes: “E se este novo livro é mau?” Da resposta a dar encarregou-se Kjell Espmark, em quem os colegas depositaram a responsabilidade de proceder à leitura do livro no seu idioma original. Espmark, que tem certa familiaridade com a nossa língua, cumpriu disciplinadamente a missão. Com o auxílio de um dicionário, em pleno mês de Agosto, quando mais apeteceria ir navegar entre as ilhas que enxameiam o mar sueco, leu, palavra a palavra. a história do funcionário Sr. José e da mulher a quem ele amou sem nunca a ter visto. Passei o exame, afinal o livrinho não ficava nada atrás do “Ensaio sobre a Cegueira”. Uf.
19 Nov, 2008

Inundação

Venho da Casa do Alentejo onde participei numa sessão de solidariedade com a luta do povo palestino pela sua plena soberania contra as arbitrariedades e os crimes de que Israel é responsável. Deixei lá uma sugestão: que a partir de 20 de Janeiro, data da tomada de posse de Barack Obama, a Casa Branca seja inundada de mensagens de apoio ao povo palestino e em que se exija uma rápida solução do conflito. Se Barack Obama quer libertar o seu país da infâmia do racismo, faça-o também em Israel. Desde há sessenta anos que o povo palestino vem sendo friamente martirizado com a cumplicidade tácita ou activa da comunidade internacional. É tempo de acabar com isto.
18 Nov, 2008

Vivo, vivíssimo

Intento ser, à minha maneira, um estóico prático, mas a indiferença como condição de felicidade nunca teve lugar na minha vida, e se é certo que procuro obstinadamente o sossego do espírito, certo é também que não me libertei nem pretendo libertar-me das paixões. Trato de habituar-me sem excessivo dramatismo à ideia de que o corpo não só é finível, como de certo modo é já, em cada momento, finito. Que importância tem isso, porém, se cada gesto, cada palavra, cada emoção são capazes de negar, também em cada momento, essa finitude? Em verdade, sinto-me vivo, vivíssimo, quando, por uma razão ou por outra, tenho de falar da morte…

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