Não é do melhor augúrio que o futuro presidente dos Estados Unidos venha repetindo uma e outra vez, sem lhe tremer a voz, que manterá com Israel a “relação especial” que liga os dois países, em particular o apoio incondicional que a Casa Branca tem dispensado à política repressiva (repressiva é dizer pouco) com que os governantes (e porque não também os governados?) israelitas não têm feito outra coisa senão martirizar por todos os modos e meios o povo palestino. Se a Barack Obama não lhe repugna tomar o seu chá com verdugos e criminosos de guerra, bom proveito lhe faça, mas não conte com a aprovação da gente honesta. Outros presidentes colegas seus o fizeram antes sem precisarem de outra justificação que a tal “relação especial” com a qual se deu cobertura a quantas ignomínias foram tramadas pelos dois países contra os direitos nacionais dos palestinos.Ao longo da campanha eleitoral Barack Obama, fosse por vivência pessoal ou por estratégia política, soube dar de si mesmo a imagem de um pai estremoso. Isso me leva a sugerir-lhe que conte esta noite uma história às suas filhas antes de adormecerem, a história de um barco que transportava quatro toneladas de medicamentos para acudir à terrível situação sanitária da população de Gaza e que esse barco, Dignidade era o seu nome, foi destruído por um ataque de forças navais israelitas sob o pretexto de que não tinha autorização para atracar nas suas costas (julgava eu, afinal ignorante, que as costas de Gaza eram palestinas…) E não se surpreenda se uma das suas filhas, ou as duas em coro, lhe disserem: “Não te canses, papá, já sabemos o que é uma relação especial, chama-se cumplicidade no crime”.
Os cadáveres de cinco irmãs palestinas de 4 a 17 anos mortas no bombardeamento nocturno israelita a uma mesquita do campo de refugiados de Yabalia jazem na morgue de um hospitalAgencia France Press - Publicada en El País - 27-12-2008
Estou às voltas com um novo livro. Quando, no meio de uma conversação, deixo cair a notícia, a pergunta que me fazem é inevitável (o meu sobrinho Olmo fê-la ontem): e qual vai ser o título? A solução mais cómoda para mim seria responder que ainda não o tenho, que precisarei de chegar ao fim para me decidir entre as hipóteses que se me forem apresentando (supondo que assim seria) durante o trabalho. Cómoda, sem dúvida nenhuma, mas falsa. A verdade é que ainda a primeira linha do livro não havia sido escrita e eu já sabia, desde há quase três anos (quando a ideia surgiu), como ele se iria chamar. Alguém perguntará: porquê esse segredo? Porque a palavra do título (é só uma palavra) contaria, só por si, toda a história. Costumo dizer que quem não tiver paciência para ler os meus livros, passe os olhos ao menos pelas epígrafes porque por elas ficará a saber tudo. Não sei se o livro em que estou a trabalhar levará epígrafe. Talvez não. O título bastará.
São perfeitos. Enfim, quase. Falam alto e sem descanso, apaixona-os a discussão pela discussão, são muitas vezes sectários, violentos de palavras, em todo o caso mais na forma que no fundo. As mulheres, que são cinco, fazem tanto ruído, senão mais ainda que os homens, que são dez. Para eles e para elas nenhum assunto ficará alguma vez suficientemente debatido. Nunca desistem. A pronúncia granadina torna com frequência ininteligível o que dizem. Não importa. Embora eu tenha as minha dúvidas, afirmam que se entendem uns aos outros perfeitamente. Têm um sentido de humor particular que muitas vezes me ultrapassa e que não raro me leva a perguntar aos meus próprios botões onde estava a graça. Os noivos e as noivas, os esposos e as esposas, grupo em que estou incluído, assistem estupefactos, e, como não podem vencê-los, acabam por juntar-se ao coro, excepto algum raro caso que prefira o discreto silêncio. Em vinte anos nunca vi que destas discussões resultasse uma zanga, um conflito a necessitar conselho de família e reconciliação. Por mais que tenha chovido e trovejado antes, o céu sempre acabará limpo de nuvens. Perfeitos não serão, mas boa gente, sim.
Há muitos anos, nada menos que em 1993, escrevi nos “Cadernos de Lanzarote” umas quantas palavras que fizeram as delícias de alguns teólogos desta parte da Ibéria, especialmente Juan José Tamayo, que desde aí, generosamente, me deu a sua amizade. Foram elas: “Deus é o silêncio do universo, e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio”. Reconheça-se que a ideia não está mal formulada, com o seu “quantum satis” de poesia, a sua intenção levemente provocadora e o subentendido de que os ateus são muito capazes de aventurar-se pelos escabrosos caminhos da teologia, ainda que a mais elementar. Nestes dias em que se celebra o nascimento do Cristo, outra ideia me acudiu, talvez mais provocadora ainda, direi mesmo que revolucionária, e que em pouquíssimas palavras se enuncia. Ei-las. Se é verdade que Jesus, na última ceia, disse aos discípulos, referindo-se ao pão e ao vinho que estavam sobre a mesa: “Este é o meu corpo, este é o meu sangue”, então não será ilegítimo concluir que as inumeráveis ceias, as pantugruélicas comezainas, as empaturradelas homéricas com que milhões e milhões de estômagos têm de haver-se para iludir os perigos de uma congestão fatal, não serão mais que a multitudinária cópia, ao mesmo tempo efectiva e simbólica, da última ceia: os crentes alimentam-se do seu deus, devoram-no, digerem-no, eliminam-no, até ao próximo natal, até à próxima ceia, ao ritual de uma fome material e mística sempre insatisfeita. A ver agora que dizem os teólogos.
“Morri” na noite de 22 de Dezembro de 2007, às quatro horas da madrugada, para “ressuscitar” só nove horas depois. Um colapso orgânico total, uma paragem das funções do corpo, levaram-me ao último limiar da vida, lá onde já é tarde de mais para despedidas. Não recordo nada. Pilar estava ali, estava também Maria, minha cunhada, uma e outra diante de um corpo inerte, abandonado de todas as forças e donde o espírito parecia ter-se ausentado, que mais tinha já de irremediável cadáver que de ser vivente. São elas que me contam hoje o que foram aquelas horas. Ana, a minha neta, chegou na tarde do mesmo dia, Violante no seguinte. O pai e avô ainda era como a pálida chama de uma vela que ameaçasse extinguir-se ao sopro da sua própria respiração. Soube depois que o meu corpo seria exposto na biblioteca, rodeado de livros e, digamo-lo assim, outras flores. Escapei. Um ano de recuperação, lenta, lentíssima como me avisaram os médicos que teria de ser, devolveu-me a saúde, a energia, a agilidade do pensamento, devolveu-me também esse remédio universal que é o trabalho. Em direcção, não à morte, mas à vida, fiz a minha própria “Viagem do Elefante”, e aqui estou. Para vos servir.
NatalNatal. Na província neva.Nos lares aconchegadosUm sentimento conservaOs sentimentos passados.Coração oposto ao mundo,Como a família é verdade!Meu pensamento é profundo,Por isso tenho saudade.E como é branca de graçaA paisagem que não sei,Vista de trás da vidraçaDo lar que nunca terei!Fernando Pessoa
A sigla ONU, toda a gente o sabe, significa Organização das Nações Unidas, isto é, à luz da realidade, nada ou muito pouco. Que o digam os palestinos de Gaza a quem se lhes estão esgotando os alimentos, ou que se esgotaram já, porque assim o impôs o bloqueio israelita, decidido, pelos vistos, a condenar à fome as 750 mil pessoas ali registadas como refugiados. Nem pão têm já, a farinha acabou, e o azeite, as lentilhas e o açúcar vão pelo mesmo caminho. Desde o dia 9 de Dezembro os camiões da agência das Nações Unidas, carregados de alimentos, aguardam que o exército israelita lhes permita a entrada na faixa de Gaza, uma autorização uma vez mais negada ou que será retardada até ao último desespero e à última exasperação dos palestinos famintos. Nações Unidas? Unidas? Contando com a cumplicidade ou a cobardia internacional, Israel ri-se de recomendações, decisões e protestos, faz o que entende, quando o entende e como o entende. Vai ao ponto de impedir a entrada de livros e instrumentos musicais como se se tratasse de produtos que iriam pôr em risco a segurança de Israel. Se o ridículo matasse não restaria de pé um único político ou um único soldado israelita, esses especialistas em crueldade, esses doutorados em desprezo que olham o mundo do alto da insolência que é a base da sua educação. Compreendemos melhor o deus bíblico quando conhecemos os seus seguidores. Jeová, ou Javé, ou como se lhe chame, é um deus rancoroso e feroz que os israelitas mantêm permanentemente actualizado.
Voltaire não tinha agente literário. Não o teve ele nem nenhum escritor do seu tempo e de largos tempos mais. O agente literário simplesmente não existia. O negócio, se assim lhe quisermos chamar, funcionava com dois únicos interlocutores, o autor e o editor. O autor tinha a obra, o editor os meios para publicá-la, nenhum intermediário entre um e outro. Era o tempo da inocência. Não quer isto dizer que o agente literário tenha sido e continue a ser a serpente tentadora nascida para perverter as harmonias de um paraíso que, verdadeiramente, nunca existiu. Porém, directa ou indirectamente, o agente literário foi o ovo posto por uma indústria editorial que havia passado a preocupar-se muito mais com um descobrimento em cadeia de best-sellers que com a publicação e a divulgação de obras de mérito. Os escritores, gente em geral ingénua que facilmente se deixa iludir pelo agente literário do tipo chacal ou tubarão, correm atrás de promessas de vultosos adiantamentos e de promoções planetárias como se disso dependesse a sua vida. E não é assim. Um adiantamento é simplesmente um pagamento por conta, e, quanto a promoções, todos temos a obrigação de saber, por experiência, que as realidades ficam quase sempre aquém das expectativas.Estas considerações não são mais que uma modesta glosa da excelente conferência pronunciada por Basílio Baltasar em finais de Novembro no México, com o título de “A desejada morte do editor”, na sequência de uma entrevista dada a “El País” pelo famoso agente literário Andrew Willie. Famoso, digo, embora nem sempre pelas melhores razões. Não me atreveria, nem seria este o lugar adequado, a resumir as pertinentes análises de Basilio Baltasar a partir da estulta declaração do dito Willie de que “O editor é nada, nada” e que me recorda as palavras de Roland Barthes quando anunciou a morte do autor… Afinal, o autor não morreu, e o ressurgimento do editor amante do seu trabalho está nas mãos do editor, se assim o quiser. E também nas mãos dos escritores a quem vivamente recomendo a leitura da conferência de Basilio Baltasar, que deverá ser publicada, e um seu consequente debate.
Não pode haver conferência de imprensa sem palavras, em geral muitas, algumas vezes demasiadas. Pilar insiste em recomendar-me que dê respostas breves, fórmulas sintéticas capazes de concentrar longos discursos que ali estariam fora de lugar. Tem razão, mas a minha natureza é outra. Penso que cada palavra necessita sempre pelo menos outra que a ajude a explicar-se. A coisa chegou a um ponto tal que, de há tempos a esta parte, passei a antecipar-me às perguntas que supostamente me farão, procedimento facilitado pelo conhecimento prévio que venho acumulando sobre o tipo de assuntos que aos jornalistas mais costumam interessar. O divertido do caso está na liberdade que assumo ao iniciar uma exposição dessas. Sem ter de preocupar-me com os enquadramentos temáticos que cada pergunta específica necessariamente estabeleceria, embora não fosse essa a sua intenção declarada, lanço a primeira palavra, e a segunda, e a terceira, como pássaros a que foi aberta a porta da gaiola, sem saber muito bem, ou não o sabendo de todo, aonde eles me levarão. Falar torna-se então numa aventura, comunicar converte-se na busca metódica de um caminho que leve a quem estiver escutando, tendo sempre presente que nenhuma comunicação é definitiva e instantânea, que muitas vezes é preciso voltar atrás para aclarar o que só sumariamente foi enunciado. Mas o mais interessante em tudo isto é descobrir que o discurso, em lugar de se limitar a iluminar e dar visibilidade ao que eu próprio julgava saber acerca do meu trabalho, acaba invariavelmente por revelar o oculto, o apenas intuído ou pressentido, e que de repente se torna numa evidência insofismável em que sou o primeiro a surpreender-me, como alguém que estava no escuro e acabou de abrir os olhos para uma súbita luz. Enfim, vou aprendendo com as palavras que digo. Eis uma boa conclusão, talvez a melhor, para este discurso. Finalmente breve.
O riso é imediato. Ver o presidente dos Estados Unidos a encolher-se atrás do microfone enquanto um sapato voa sobre a sua cabeça é um excelente exercício para os músculos da cara que comandam a gargalhada. Este homem, famoso pela sua abissal ignorância e pelos seus contínuos dislates linguísticos, fez-nos rir muitas vezes durante os últimos oito anos. Este homem, também famoso por outras razões menos atractivas, paranoico contumaz, deu-nos mil motivos para que o detestássemos, a ele e aos seus acólitos, cúmplices na falsidade e na intriga, mentes pervertidas que fizeram da política internacional uma farsa trágica e da simples dignidade o melhor alvo da irrisão absoluta. Em verdade, o mundo, apesar do desolador espectáculo que nos oferece todos os dias, não merecia um Bush. Tivemo-lo, sofrêmo-lo, a um ponto tal que a vitória de Barack Obama terá sido considerada por muita gente como uma espécie de justiça divina. Tardia como em geral a justiça o é, mas definitiva. Afinal, não era assim, faltava-nos o golpe final, faltavam-nos ainda aqueles sapatos que um jornalista da televisão iraquiana lançou à mentirosa e descarada fachada que tinha na sua frente e que podem ser entendidos de duas formas: ou que esses sapatos deveriam ter uns pés dentro e o alvo do golpe ser aquela parte arredondada do corpo onde as costas mudam de nome, ou então que Mutazem al Kaidi (fique o seu nome para a posteridade) terá encontrado a maneira mais contundente e eficaz de expressar o seu desprezo. Pelo ridículo. Um par de pontapés também não estaria mal, mas o ridículo é para sempre. Voto no ridículo.