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O juiz Baltasar Garzón deixou em Lisboa uma lição do que é ou deve ser o Direito. A verdade é que, em sentido estrito, do que se falou no acto organizado pela Fundação foi de Justiça. E de sentido comum: dos delitos que não podem ficar impunes, das vítimas a quem tem de ser dada satisfação, dos tribunais que têm de levantar alcatifas para ver o que há por baixo do horror. Porque muitas vezes, por baixo do horror, há interesses económicos, delitos claramente identificados perpetrados por pessoas e grupos concretos que não podem ser ignorados em Estados que se proclaman de direito. Quem sabe se os responsáveis dos crimes contra a humanidade, que de outra forma não posso chamar a esta crise financeira e económica internacional, não acabarão processados, como o foram Pinochet ou Videla ou outros ditadores terríveis que tanta dor espalharam? Quem sabe?
O juiz Baltasar Garzón fez-nos compreender a importância de não cair na vileza uma vez para não ficar para sempre vil. Quem conculca uma vez os direitos humanos, em Guantánamo, por exemplo, atira pela borda fora anos de direito e de legalidade. Não se pode ser cúmplice do caos internacional com que a administração Bush infectou meio mundo. Nem os governos, nem os cidadãos.
Um auditório multitudinário e atento seguiu as intervenções do juiz com respeito e consideração. E aplaudiu como quem ouve não verdades reveladas, mas sim a voz efectiva de que o mundo necessita para não cair em na permissividade da abjecção.
A Fundação está contente: fizemos o que pudemos para recordar que há uma Declaração de Direitos Humanos, que estes não são respeitados e que os cidadãos têm de exigir que não se tornem em letra morta. Baltasar Garzón cumpriu a sua parte e tê-lo posto a claro esta tarde em Lisboa só pode fazer com que nos felicitemos.
Hoje, o encontro é na Casa do Alentejo, às 6 da tarde. Como se refere no título, trata-se de uma homenagem. Homenagem a quem? A ninguém em particular, pois que ela contemplará as próprias Letras Portuguesas na sua totalidade, por assim dizer de A a Z, celebradas num acto de canto e de leituras a cargo de vinte escritores, actores e jornalistas que, generosamente, puseram o seu tempo e o seu talento ao serviço de uma ideia nascida na Fundação. O dia escolhido, este 10 de Dezembro de 2008, rememora a entrega do Prémio Nobel a um escritor português que, no seu discurso de agradecimento, entendeu dever partilhar a distinção não só com todos os escritores seus contemporâneos, sem excepção, mas também com os que nos antecederam, aqueles que, no dizer de Camões, da lei da morte se libertaram. Serão lidos ou cantados textos dos seguintes autores: Antero de Quental, Padre António Vieira, Vitorino Nemésio, José Cardoso Pires, Ruy Belo, Sophia de Mello Breyner, Pedro Homem de Mello, Miguel Torga, Eça de Queiroz, Natália Correia, David Mourão-Ferreira, Ary dos Santos, Camilo Castelo Branco, Manuel da Fonseca, Almada Negreiros, José Gomes Ferreira, Teixeira de Pascoaes, Raul Brandão, Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Aquilino Ribeiro, Almeida Garrett, Luís de Camões, Carlos de Oliveira e Fernando Namora. Um verdadeiro quadro de honra que a todos deve honrar-nos.
Há muitos anos, em Nápoles, passando por uma daquelas ruas onde tudo pode acontecer, a curiosidade foi-me despertada por um café com todo o ar de ter aberto as suas portas havia poucos dias. As madeiras eram claras, os cromados brilhantes, o chão limpo, enfim, uma festa não só para os olhos, também para o olfacto e para o paladar, como veio demonstrá-lo o excelente café que me serviram. Perguntou-me o empregado donde era eu, respondi-lhe que de Portugal, e ele, com a naturalidade de quem oferece uma informação útil, disse: “Isto é da camorra”. Apanhado de surpresa, limitei-me a deixar sair da boca um “Ah, sim?” que não me comprometia em nada, mas que me serviu para tentar iludir a súbita inquietação que me roçou a boca do estômago. Tinha na frente alguém que podia ser visto como um simples contratado sem especiais responsabilidades na actividade criminosa dos patrões, mas que a lógica aconselhava a olhar com prudência e desconfiar de uma cordialidade fora de lugar, uma vez que eu não passava de um cliente de passagem que não conseguia compreender como uma revelação aparentemente incriminatória havia sido prestada com o mais amável dos sorrisos. Paguei, saí e, já na rua, estuguei o passo como se um bando de sicários armados até aos dentes se preparasse para me perseguir. Depois de virar três ou quatro esquinas, comecei a tranquilizar-me. O empregado do café podia ser um facínora, mas razão para querer-me mal, não a tinha. Estava claro que se contentara com dizer-me aquilo que eu, como habitante deste planeta, devia ter obrigação de saber, que Nápoles, toda ela, estava nas mãos da camorra, que a beleza da baía era um disfarce ilusório e a tarantela uma marcha fúnebre.
Os anos passaram, mas o episódio nunca se me apagou da memória. E agora regressa como algo vivido ontem, aquelas madeiras claras, o brilho dos cromados, o sorriso cúmplice do empregado, que empregado não seria, mas gerente, homem de confiança da camorra, camorrista ele próprio. Penso em Roberto Saviano, ameaçado de morte por ter escrito um livro de denúncia de uma organização criminosa capaz de sequestrar uma cidade inteira e quem lá vive, penso em Roberto Saviano que tem a cabeça não a prémio, mas a prazo, e pergunto-me se algum dia acordaremos do pesadelo que a vida é para tantos, perseguidos por dizerem a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade. Sinto-me humilde, quase insignificante, perante a dignidade e a coragem do escritor e jornalista Roberto Saviano, mestre de vida.