Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Outros Cadernos de Saramago

Outros Cadernos de Saramago

15 Dez, 2008

Borges

Maria Kodama voltou a Portugal, desta vez para assistir à inauguração de um monumento a Jorge Luis Borges. Havia bastante público no Jardim do Arco do Cego, onde a memória foi implantada. Uma banda filarmónica tocou o hino deArgentina e também, não o hino nacional português, mas o hino da Maria da Fonte, expressão musical da revolução a que foi posto esse nome por alturas de 1846-47 e que ainda hoje continua a ser tocada em cerimónias civis e militares. O monumento é simples, um bloco vertical de granito da melhor qualidade no qual se abre um vão onde uma mão dourada, molde directo da mão direita de Jorge Luis Borges, segura uma caneta. É simples, evocativo, muito preferível a um busto ou uma estátua em que nos cansaríamos a procurar semelhanças. Improvisei umas quantas palavras sobre o autor de Ficções, a quem continuo a considerar como o inventor da literatura virtual, essa sua literatura que parece ter-se desprendido da realidade para melhor revelar os seus invisíveis mistérios. Foi um bom princípio de tarde. E Maria Kodama estava feliz.
12 Dez, 2008

Baltasar Garzón, 2

O juiz Baltasar Garzón deixou em Lisboa uma lição do que é ou deve ser o Direito. A verdade é que, em sentido estrito, do que se falou no acto organizado pela Fundação foi de Justiça. E de sentido comum: dos delitos que não podem ficar impunes, das vítimas a quem tem de ser dada satisfação, dos tribunais que têm de levantar alcatifas para ver o que há por baixo do horror. Porque muitas vezes, por baixo do horror, há interesses económicos, delitos claramente identificados perpetrados por pessoas e grupos concretos que não podem ser ignorados em Estados que se proclaman de direito. Quem sabe se os responsáveis dos crimes contra a humanidade, que de outra forma não posso chamar a esta crise financeira e económica internacional, não acabarão processados, como o foram Pinochet ou Videla ou outros ditadores terríveis que tanta dor espalharam? Quem sabe?

O juiz Baltasar Garzón fez-nos compreender a importância de não cair na vileza uma vez para não ficar para sempre vil. Quem conculca uma vez os direitos humanos, em Guantánamo, por exemplo, atira pela borda fora anos de direito e de legalidade. Não se pode ser cúmplice do caos internacional com que a administração Bush infectou meio mundo. Nem os governos, nem os cidadãos.

Um auditório multitudinário e atento seguiu as intervenções do juiz com respeito e consideração. E aplaudiu como quem ouve não verdades reveladas, mas sim a voz efectiva de que o mundo necessita para não cair em na permissividade da abjecção.

A Fundação está contente: fizemos o que pudemos para recordar que há uma Declaração de Direitos Humanos, que estes não são respeitados e que os cidadãos têm de exigir que não se tornem em letra morta. Baltasar Garzón cumpriu a sua parte e tê-lo posto a claro esta tarde em Lisboa só pode fazer com que nos felicitemos.

garzon_saramago

Ver vídeo

11 Dez, 2008

Baltasar Garzón

Apesar do tempo agreste, com chuva a espaços e frio, o cinema estava cheio. Carmen Castillo temia que as duas horas e meia de projecção do seu documentário acabassem por fazer desanimar a assistência, mas não foi assim. Nem uma só pessoa se levantou para sair e, no final, com os espectadores rendidos à força das imagens e aos testemunhos estremecedores dos membros do M.I.R sobreviventes da ditadura, Carmen foi aplaudida de pé. Nós, os da Fundação, estávamos orgulhosos daquele público. Havia confiança, mas a realidade excedeu as previsões mais optimistas.À hora a que escrevo, mais de duzentos mil exemplares da Declaração Universal dos Direitos Humanos circulam nas mãos de outros tantos leitores dos jornais Diário de Notícias, de Lisboa, e Jornal de Notícias, do Porto. E hoje, dia 11, será a vez de Baltasar Garzón, que vem expressamente de Madrid para falar de direitos humanos, de Chile e de Guantánamo. Tal como a homenagem às Letras Portuguesas que se realizou ao fim da tarde com grande êxito, a conferência de Garzón será na Casa do Alentejo, às 18 horas. É uma boa ocasião para aprender. Sim, para aprender.ba2Baltasar Garzón
10 Dez, 2008

Homenagem

Hoje, o encontro é na Casa do Alentejo, às 6 da tarde. Como se refere no título, trata-se de uma homenagem. Homenagem a quem? A ninguém em particular, pois que ela contemplará as próprias Letras Portuguesas na sua totalidade, por assim dizer de A a Z, celebradas num acto de canto e de leituras a cargo de vinte escritores, actores e jornalistas que, generosamente, puseram o seu tempo e o seu talento ao serviço de uma ideia nascida na Fundação. O dia escolhido, este 10 de Dezembro de 2008, rememora a entrega do Prémio Nobel a um escritor português que, no seu discurso de agradecimento, entendeu dever partilhar a distinção não só com todos os escritores seus contemporâneos, sem excepção, mas também com os que nos antecederam, aqueles que, no dizer de Camões, da lei da morte se libertaram. Serão lidos ou cantados textos dos seguintes autores: Antero de Quental, Padre António Vieira, Vitorino Nemésio, José Cardoso Pires, Ruy Belo, Sophia de Mello Breyner, Pedro Homem de Mello, Miguel Torga, Eça de Queiroz, Natália Correia, David Mourão-Ferreira, Ary dos Santos, Camilo Castelo Branco, Manuel da Fonseca, Almada Negreiros, José Gomes Ferreira, Teixeira de Pascoaes, Raul Brandão, Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Aquilino Ribeiro, Almeida Garrett, Luís de Camões, Carlos de Oliveira e Fernando Namora. Um verdadeiro quadro de honra que a todos deve honrar-nos.

09 Dez, 2008

Calle Santa Fe

A rua existe, está em Santiago de Chile. Ali, os esbirros de Pinochet cercaram um casa térrea onde viviam (melhor será dizer que se refugiavam) Carmen Castillo e o seu companheiro de vida e de acção política Miguel Enríquez, dirigente principal do M.I.R, sigla do Movimiento de Izquierda Revolucionario que havia apoiado e colaborado com Salvador Allende e agora era objecto da perseguição do poder militar que havia traído a democracia e se preparava para estabelecer uma das mais ferozes ditaduras que a América do Sul teve a desgraça de conhecer. Miguel Enriquez foi morto, gravemente ferida Carmen Castillo, que estava grávida. Muitos anos depois, Carmen vem recordar e reconstituir esses dias num documentário de impressionante sinceridade e realismo que teremos o privilégio de ver esta noite no cinema King. Documentário que é, ao mesmo tempo, graças ao saber e à sensibilidade da sua realizadora, cinema da mais alta qualidade. Até logo, pois.carmen_castillo_foto1Carmen Castillo
04 Dez, 2008

Saviano

Há muitos anos, em Nápoles, passando por uma daquelas ruas onde tudo pode acontecer, a curiosidade foi-me despertada por um café com todo o ar de ter aberto as suas portas havia poucos dias. As madeiras eram claras, os cromados brilhantes, o chão limpo, enfim, uma festa não só para os olhos, também para o olfacto e para o paladar, como veio demonstrá-lo o excelente café que me serviram. Perguntou-me o empregado donde era eu, respondi-lhe que de Portugal, e ele, com a naturalidade de quem oferece uma informação útil, disse: “Isto é da camorra”. Apanhado de surpresa, limitei-me a deixar sair da boca um “Ah, sim?” que não me comprometia em nada, mas que me serviu para tentar iludir a súbita inquietação que me roçou a boca do estômago. Tinha na frente alguém que podia ser visto como um simples contratado sem especiais responsabilidades na actividade criminosa dos patrões, mas que a lógica aconselhava a olhar com prudência e desconfiar de uma cordialidade fora de lugar, uma vez que eu não passava de um cliente de passagem que não conseguia compreender como uma revelação aparentemente incriminatória havia sido prestada com o mais amável dos sorrisos. Paguei, saí e, já na rua, estuguei o passo como se um bando de sicários armados até aos dentes se preparasse para me perseguir. Depois de virar três ou quatro esquinas, comecei a tranquilizar-me. O empregado do café podia ser um facínora, mas razão para querer-me mal, não a tinha. Estava claro que se contentara com dizer-me aquilo que eu, como habitante deste planeta, devia ter obrigação de saber, que Nápoles, toda ela, estava nas mãos da camorra, que a beleza da baía era um disfarce ilusório e a tarantela uma marcha fúnebre.

Os anos passaram, mas o episódio nunca se me apagou da memória. E agora regressa como algo vivido ontem, aquelas madeiras claras, o brilho dos cromados, o sorriso cúmplice do empregado, que empregado não seria, mas gerente, homem de confiança da camorra, camorrista ele próprio. Penso em Roberto Saviano, ameaçado de morte por ter escrito um livro de denúncia de uma organização criminosa capaz de sequestrar uma cidade inteira e quem lá vive, penso em Roberto Saviano que tem a cabeça não a prémio, mas a prazo, e pergunto-me se algum dia acordaremos do pesadelo que a vida é para tantos, perseguidos por dizerem a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade. Sinto-me humilde, quase insignificante, perante a dignidade e a coragem do escritor e jornalista Roberto Saviano, mestre de vida.

Esta tarde o elefante Salomão voltará a Belém. Quer dizer, a figura literária, por coisas do destino, será apresentada no lugar de onde o elefante real partiu, no século XVI, até Viena de Áustria, com paragens em Castelo Rodrigo, Valladolid, Rosas, Génova, Pádua e por outros locais até cruzar os Alpes e acabar os seus dias na corte de Maximiliano.

O escritor António Mega Ferreira e o professor, e também escritor, Manuel Maria Carrilho serão os encarregados de orientar uma conversa que se tem como tema central um livro, não me estranharia nada que abordasse outros assuntos que aos três nos preocupam porque estão, como dizem alguns jornalistas, na agenda do dia a dia. Sim, não me importaria que a apresentação deste elefante servisse para falar do mundo, este mundo que se rompe por tantas costuras porque desde o elefante Salomão até agora, embora possíveis, não se consolidaram as melhoras de que necessitávamos. Para evitar a noite que se nos avizinha.
01 Dez, 2008

Diferenças

Da viagem ao Brasil se tem falado neste espaço, deixando constância das horas felizes que vivemos, das palavras ouvidas e pronunciadas, das amizades antigas e das novas amizades, também dos ecos dolorosos da tragédia de Santa Catarina, aquelas chuvas torrenciais, aqueles morros feitos lama que sepultaram mais de uma centena de pessoas sem defesa, como é norma dos cataclismos naturais que parecem preferir, para vítimas, os mais pobres dos pobres. Regressados a Lisboa seria este o momento de um balanço geral, de um resumo do acontecido, se a discrição nos sentimentos, de que creio ter dado suficientes provas na minha vida, não aconselhasse antes o uso de uma fórmula abrangente e concisa: “correu tudo bem”. Se mais algum livro houver ainda, não poderei desejar para ele melhor acolhimento que o que teve este A Viagem do Elefante que nos levou ao Brasil.Ontem deixei aqui algumas frases admirativas sobre as magníficas instalações da Livraria Cultura, em São Paulo. Ao assunto volto, em primeiro lugar para reiterar como justiça devida, a impressão de deslumbramento que ali experimentámos, Pilar e eu, mas também para algumas considerações menos optimistas, resultantes da inevitável comparação entre uma pujança que não era apenas comercial porque envolvia a boa disposição dos numerosos compradores presentes, e, contraste com a incurável tristeza que acinzenta as nossas livrarias, contaminadas pela deficiente formação profissional e o baixo nível da maioria daqueles que lá trabalham. A indústria livreira do país irmão é uma coisa séria, bem estruturada, que, além dos seus méritos próprios, que não são escassos, conta com apoios do Estado para nós inimagináveis. O governo brasileiro é um grande comprador de livros, uma espécie de “mecenas” público sempre pronto para abrir os cordões à bolsa quando se trate de abastecer bibliotecas, estimular as actividades editoriais, organizar campanhas de difusão de leitura que se caracterizam, como tive ocasião de constatar, pela eficácia das estratégias publicitárias. Todo o contrário do que se passa nestas terras lusas em muitos aspectos ainda por desbravar, à espera de um sinal, de um plano de acção, e também, se se me desculpa o comercialismo, de um cheque. O dinheiro, diz a sabedoria popular, é aquilo com que se compram os melões. E também os livros e outros bens do espírito, Senhor Primeiro-Ministro, que, nestes particulares da cultura, tem andado bastante distraído. Para nosso mal.

Pág. 2/2