Diz o refrão que não há bem que sempre dure nem mal que ature, o que vem assentar como uma luva no trabalho de escrita que acaba aqui e em quem o fez. Algo de bom se encontrará neste textos, e por eles, sem vaidade, me felicito, algo de mal terei feito noutros e por esse defeito me desculpo, mas só por não tê-los feito melhor, que diferentes, com perdão, não poderiam eles ser. Às despedidas sempre conveio que fossem breves. Não é isto uma ária de ópera para lhe meter agora um interminável adio, adio. Adeus, portanto. Até outro dia? Sinceramente, não creio. Comecei outro livro e quero dedicar-lhe todo o meu tempo. Já se verá porquê, se tudo correr bem. Entretanto, terão aí o “Caim”.P. S – Pensando melhor, não há que ser tão radical. Se alguma vez sentir necessidade de comentar ou opinar sobre algo, virei bater à porta do Caderno, que é o lugar onde mais a gosto poderei expressar-me.
Desde há mais de sessenta anos que eu deveria saber conduzir um automóvel. Conhecia bem, naqueles remotos tempos, o funcionamento de tão generosas máquinas de trabalho e de passeio, desmontava e montava motores, limpava carburadores, afinava válvulas, investigava diferenciais e caixas de mudanças, instalava calços de travões, remendava câmaras de ar furadas, enfim, sob a precária protecção do meu fato-macaco azul que me defendia o melhor que podia das nódoas de óleo, efectuei com razoável eficiência quase todas as operações por que é obrigado a passar um automóvel ou um camião a partir do momento em que entra numa oficina para recuperar a saúde, tanto a mecânica como a eléctrica. Só faltava que me sentasse um dia atrás do volante a fim de receber do instrutor as lições práticas que deveriam culminar no exame e na sonhada aprovação que me permitiria ingressar na ordem social cada vez mais numerosa dos automobilistas encartados. Contudo, esse dia maravilhoso nunca chegou. Não são apenas os traumas infantis que condicionam e influem a idade adulta, também os que se sofrem na adolescência podem vir a ter consequências desastrosas e, como no presente caso sucedeu, determinar de maneira radicalmente negativa a futura relação do traumatizado com algo tão quotidiano e banal como é um veículo automóvel. Tenho sólidas razões para crer que sou o deplorável resultado de um desses traumas. Mais ainda: por muito paradoxal que a afirmação vá parecer a quem das íntimas conexões entre as causas e os efeitos somente tiver ideias elementares, se nos meu verdes anos não tivesse trabalhado como serralheiro-mecânico numa oficina de automóveis, hoje, provavelmente, saberia conduzir um carro, seria um orgulhoso transportador em lugar de um humilde transportado. Além das operações que comecei por referir, e como parte obrigatória de algumas delas, também substituía as juntas dos motores, essas finas placas forradas de folha de cobre sem as quais seria impossível evitar fugas da mistura gasosa de combustível e ar entre a cabeça do motor e o bloco dos cilindros. (Se a linguagem que estou a usar parecer ridiculamente arcaica aos entendidos em automóveis modernos, mais governados por computadores do que pela cabeça de quem os conduz, a culpa não é minha: falo do que conheci, não do que desconheço, e muita sorte que não me ponha aqui a descrever a estrutura das rodas dos carros de bois e a maneira de atrelar estes animais ao jugo. É matéria igualmente arcaica em que também tive alguma competência). Ora, um dia, depois de ter acabado o trabalho e colocado a junta no seu sítio, depois de ter apertado com a força dos meus dezanove anos as porcas que sujeitavam a cabeça do motor ao bloco, dispus-me a realizar a última fase da operação, isto é, encher de água o radiador. Desenrosquei pois o tampão e comecei a deitar para a boca do radiador a água com que tinha enchido o velho regador que para esse e outros efeitos havia na oficina. Um radiador é um depósito, tem uma capacidade limitada e não aceita nem um mililitro mais do que a quantidade de água que lá caiba. Água que continue a deitar-se-lhe é água que transborda. Algo de estranho, porém, se estava a passar com aquele radiador, a água entrava, entrava, e por mais água que lhe metesse não a via subir dançando até à boca, que seria o sinal de estar acabado o enchimento. A água que já vertera por aquela insaciável garganta abaixo teria bastado para satisfazer dois ou três radiadores de camião, e era como se nada. Às vezes penso que, sessenta e muitos anos passados, ainda hoje estaria a tentar encher aquele tonel das Danaides se em certa altura não me tivesse apercebido de um rumor de água a cair, como se dentro da oficina houvesse uma pequena cascata. Fui ver. Pelo tubo de escape do carro saía um avultado jorro de água que, pouco a pouco, diante dos meus olhos estupefactos, foi diminuindo de caudal até ficar reduzido a umas derradeiras e melancólicas gotas. Que se passara? Tinha colocado mal a junta, tapara entre a cabeça do motor e o bloco o que deveria ter aberto, e, muito mais grave do que isso, facilitara passagens e comunicações onde não deveria havê-las. Nunca cheguei a saber que voltas teve de dar a pobre água para ir sair ao tubo de escape. Nem quero que mo digam agora. Para vergonha bastou. Possivelmente terá sido nesse dia que comecei a pensar em tornar-me escritor. É um ofício em que somos ao mesmo tempo motor, água, volante, mudanças de velocidade e tubo de escape. Talvez, afinal, o trauma tenha valido a pena.
Vai para cem anos, em 5 de Outubro de 1910, uma revolução em Portugal derrubou a velha e caduca monarquia para proclamar uma república que, entre acertos e erros, entre promessas e malogros, passando pelos sofrimentos e humilhações de quase cinquenta anos de ditadura fascista, sobreviveu até aos nossos dias. Durante os enfrentamentos, os mortos, militares e civis, foram 76, e os feridos 364. Nessa revolução de um pequeno país situado no extremo ocidental da Europa, sobre a qual já a poeira de um século assentou, sucedeu algo que a minha memória, memória de leituras antigas, guardou e que não resisto a evocar. Ferido de morte, um revolucionário civil agonizava na rua, junto a um prédio do Rossio, a praça principal de Lisboa. Estava só, sabia que não tinha qualquer possibilidade de salvação, nenhuma ambulância se atreveria a ir recolhê-lo, pois o tiroteio cruzado impedia a chegada de socorros. Então esse homem humilde, cujo nome, que eu saiba, a história não registou, com uns dedos que tremiam, quase desfalecido, traçou na parede, conforme pôde, com o seu próprio sangue, com o sangue que lhe corria dos ferimentos, estas palavras: “Viva a república”. Escreveu república e morreu, e foi o mesmo que tivesse escrito: esperança, futuro, paz. Não tinha outro testamento, não deixava riquezas no mundo, apenas uma palavra que para ele, naquele momento, significaria talvez dignidade, isso que não se vende nem se deixa comprar, e que é no ser humano o grau supremo.
Chamam-se Ramón Lobo e Enric González. Exercem de jornalistas e são-no de facto, do melhor que se pode encontrar nas páginas de um jornal, mas eu prefiro vê-los como escritores, não porque considere hierarquizáveis as duas profissões, mas porque na leitura do que escrevem colho emoções e defino sentimentos que, ao menos em princípio, mais naturalmente são mostráveis numa obra literária de qualidade. A Ramón Lobo já levo alguns anos lendo-o, Enric González é um descobrimento recente. Como correspondente de guerra, Ramón tem a superior qualidade de pôr cada palavra, em sua exacta medida expressiva, sem retórica nem deslizamentos sensacionalistas, ao serviço do que vê, ouve e sente. Parece óbvio, mas não o é tanto, só o permitiria um domínio excepcionalmente seguro da linguagem a utilizar, e ele tem-no. De Enric González não era leitor. Via as suas colunas no “El País”, mas a minha curiosidade não era bastante forte para me levar a integrar os seus escritos na minha leitura habitual. Até ao dia em que me veio às mãos o seu livro “Historias de Nueva York”. A palavra deslumbramento não é exagerada. Livros sobre cidades são quase tantos como as estrelas no céu, mas, que eu conheça, nenhum o é como este. Julgava eu que conhecia satisfatoriamente Manhattan e os seus arredores, mas a dimensão do meu engano tornou-se-me clara logo às primeiras páginas do livro. Poucas leituras me deram tanto prazer nestes últimos anos. Tome-se este breve texto como uma homenagem e uma manifestação de gratidão a dois excepcionais jornalistas que são, ao mesmo tempo, dois notáveis escritores.
Jovem e ingénuo era quando há muitos, muitíssimos anos, alguém me convenceu a fazer um seguro de vida, sem dúvida do mais rudimentar que então se praticaria, vinte contos que me seriam entregues passados vinte anos no caso de não ter morrido, claro está, não ficando a companhia obrigada a prestar-me contas dos eventuais lucros do minúsculo investimento e suas aplicações e muito menos fazer-me participar deles. Ai de mim, porém, se não pagasse os prémios respectivos. Nessa época, os vinte contos eram muito dinheiro para mim, necessitava trabalhar quase um ano para ganhá-los, e portanto fizeram-me bom arranjo quando mos pagaram, mas o que não pude foi evitar um desagradável sentimento de desconfiança que me dizia, e insistia, que eu havia sido prejudicado, embora não soubesse exactamente como. Nessa altura não era só a chamada letra pequena que nos enganava, a própria letra grande já era um punhado de poeira atirada aos olhos. Eram outros tempos, a gente comum, na qual eu me incluía, sabia pouco da vida e mesmo esse pouco de pouco lhe servia. Quem se atreveria a discutir, já não digo com o actuário, mas com o próprio angariador de seguros, que tinha a lábia toda? Hoje já não é assim, perdemos a inocência e não fugimos a discutir com a maior das convicções até mesmo aquilo de que só temos uma pálida ideia. Que não nos venham pois com histórias, bem te conheço, ó máscara. O mau é que se as máscaras mudam, e mudam muitíssimo, o que está por baixo delas mantém-se inalterável. E nem sequer é certo que tenhamos perdido a inocência. Quando Barack Obama, no calor da campanha para a presidência, anunciou uma reforma sanitária que permitisse proteger os 46 milhões de norte-americanos não abrangidos pelo sistema em vigor para os restantes, isto é, aqueles que, directa ou indirectamente, pagam os seguros respectivos, esperávamos que uma onda de entusiasmo varresse os Estados Unidos. Tal não sucedeu e hoje sabemos porquê. Mal se iniciaram os trâmites que levarão (levarão?) ao estabelecimento da reforma, o dragão despertou. Como escreveu Augusto Monterroso: o dinossauro ainda estava ali. Não foram só as cinquenta companhias de seguros norte-americanas que controlam o actual sistema a abrir fogo contra o projecto, fê-lo também a totalidade dos senadores e deputados republicanos, e igualmente um apreciável número de representantes democratas, quer no congresso quer no senado. Nunca como neste caso a filosofia prática dos Estados Unidos esteve tão à vista: se não és rico, a culpa é tua. São 46 milhões os norte-americanos que não têm cobertura sanitária, 46 milhões de pessoas que não têm dinheiro para pagar seguros, 46 milhões de pobres que, pelos vistos, não têm onde cair mortos. Quantos Barack Obama ainda vão ser necessários para que o escândalo termine?
Creio que as teses de Huntington sobre o “choque de civilizações”, atacadas por uns e celebradas por outros aquando do seu aparecimento, mereceriam agora um estudo mais atento e menos apaixonado. Temo-nos habituado à ideia de que a cultura é uma espécie de panaceia universal e de que os intercâmbios culturais são o melhor caminho para a solução dos conflitos. Sou menos optimista. Creio que só uma manifesta e activa vontade de paz poderia abrir a porta a esse fluxo cultural multidireccional, sem ânimo de domínio de qualquer das suas partes. Essa vontade talvez exista por aí, mas não os meios para a concretizar. Cristianismo e islamismo continuam a comportar-se como inconciliáveis irmãos inimigos incapazes de chegar ao desejado pacto de não agressão que talvez trouxesse alguma paz ao mundo. Ora, já que inventámos Deus e Alá, com os desastrosos resultados conhecidos, a solução talvez estivesse em criar um terceiro deus com poderes suficientes para obrigar os impertinentes desavindos a depor as armas e deixar a humanidade em paz. E que depois esse terceiro deus nos fizesse o favor de retirar-se do cenário onde se vem desenrolando a tragédia de um inventor, o homem, escravizado pela sua própria criação, deus. O mais provável, porém, é que isto não tenha remédio e que as civilizações continuem a chocar-se umas com as outras.
Uma irresistível e já automática associação de ideias faz-me sempre recordar a Melancolia de Dürer quando penso na obra de Eduardo Lourenço. Se o Só de António Nobre é o livro mais triste que alguma vez se escreveu em Portugal, faltava-nos quem sobre essa tristeza reflectisse e meditasse. Veio Eduardo Lourenço e explicou-nos quem somos e porque o somos. Abriu-nos os olhos, mas a luz era demasiado forte. Por isso, tornámos a fechá-los.
Todo o sangue tem a sua história. Corre sem descanso no interior labiríntico do corpo e não perde o rumo nem o sentido, enrubesce de súbito o rosto e empalidece-o fugindo dele, irrompe bruscamente de um rasgão da pele, torna-se capa protectora de uma ferida, encharca campos de batalha e lugares de tortura, transforma-se em rio sobre o asfalto de uma estrada. O sangue nos guia, o sangue nos levanta, com o sangue dormimos e com o sangue despertamos, com o sangue nos perdemos e salvamos, com o sangue vivemos, com o sangue morremos. Torna-se leite e alimenta as crianças ao colo das mães, torna-se lágrima e chora sobre os assassinados, torna-se revolta e levanta um punho fechado e uma arma. O sangue serve-se dos olhos para ver, entender e julgar, serve-se das mãos para o trabalho e para o afago, serve-se dos pés para ir aonde o dever o mandou. O sangue é homem e é mulher, cobre-se de luto ou de festa, põe uma flor na cintura, e quando toma nomes que não são os seus é porque esses nomes pertencem a todos os que são do mesmo sangue. O sangue sabe muito, o sangue sabe o sangue que tem. Às vezes o sangue monta a cavalo e fuma cachimbo, às vezes olha com olhos secos porque a dor lhos secou, às vezes sorri com uma boca de longe e um sorriso de perto, às vezes esconde a cara mas deixa que a alma se mostre, às vezes implora a misericórdia de um muro mudo e cego, às vezes é um menino sangrando que vai levado em braços, às vezes desenha figuras vigilantes nas paredes das casas, às vezes é o olhar fixo dessas figuras, às vezes atam-no, às vezes desata-se, às vezes faz-se gigante para subir às muralhas, às vezes ferve, às vezes acalma-se, às vezes é como um incêndio que tudo abrasa, às vezes é uma luz quase suave, um suspiro, um sonho, um descansar a cabeça no ombro do sangue que está ao lado. Há sangues que até quando estão frios queimam. Esses sangues são eternos como a esperança.
Não o pensava antes, quando escutava a guitarra de Carlos Paredes, mas hoje, recordando-a, compreendo que aquela música era feita de alvoradas, canto de pássaros anunciando o sol. Ainda tivemos de esperar uma década antes que outra madrugada viesse abrir-se para a liberdade, mas o inesquecível tema de Verdes Anos, esse cantar de extática alegria que ao mesmo tempo se entretece em harpejos de uma surda e irreprimível melancolia, tornou-se para nós numa espécie de oração laica, um toque a reunir de esperanças e vontades. Já seria muito, mas ainda não era tudo. O resto que ainda faltava conhecer era o homem de dedos geniais, o homem que nos mostrava como podia ser belo e robusto o som de uma guitarra, e que era, a par de músico e intérprete excepcional, um exemplo extraordinário de simplicidade e grandeza de carácter. A Carlos Paredes não era preciso pedir que nos franqueasse as portas do seu coração. Estavam sempre abertas.
Quase doze anos são passados já sobre a matança de Acteal, no sudeste do Estado mexicano de Chiapas. No dia 22 de Dezembro de 1997, quando os membros da comunidade tzotzil de Las Abejas se encontravam reunidos para rezar na sua humilde capela, uma construção rústica de tábuas mal aparelhadas e sem pintura, noventa paramilitares do grupo Máscara Roja, expressamente levados ali, munidos de armas de fogo e machetes, num ataque que durou sete horas, deixaram no terreno, entre homens, crianças e mulheres, algumas delas grávidas, 45 mortos. A culpa destes mortos havia sido terem apoiado o Exército Zapatista de Libertação Nacional. A 200 metros do local, um controle de polícias não moveu um pé para ir ver o que se passava. Demasiado o saberiam eles. Estivemos em Acteal, Pilar e eu, pouco tempo depois, falámos e chorámos com alguns dos sobreviventes que tinham conseguido escapar, vimos os sinais das balas nas paredes da capela, os lugares das sepulturas, assomámos à entrada de uma cavidade na encosta onde umas quantas mulheres haviam tentado esconder-se com os filhos e onde foram assassinadas com eles a golpes de machete e rajadas à queima-roupa. Voltámos a Acteal uns meses mais tarde, o horror ainda se respirava no ar, mas justiça iria ser feita. Afinal, não. Alegando erros de processo, o Supremo Tribunal de Justiça mexicano acaba de pôr em liberdade quase vinte dos membros de Máscara Roja que cumpriam pena (imagine-se) por porte ilegal de armas, deliberadamente se ignorando que essas armas tinham disparado e assassinado. À meia dúzia deles que ainda estão na prisão, não tardará muito que os soltem também. Mas aos 45 tzotiles mortos com extremos de crueldade, a esses é que não haverá maneira de os fazer ressuscitar. Ainda há poucos dias tinha escrito aqui que o problema de justiça não é a justiça, mas os juízes. Acteal é uma prova mais.