Memórias de 1934
Encontro na Caminho algumas cartas de leitores que ainda não conhecem o meu endereço... Uma delas traz no remetente um apelido que me é familiar desde há mais de sessenta anos, desde 1934 precisamente, quando, tendo deixado o Liceu de Gil Vicente, comecei a frequentar a Escola Industrial de Afonso Domingues, donde sairia com o curso de serralheiro mecânico. Durante o tempo que ali andei, foi meu professor de Mecânica e de Matemática o engenheiro Jorge O’Neill, que, catorze anos mais tarde, viria a dar-me emprego na Companhia Previdente (de que era administrador-delegado), quando, na sequência da campanha presidencial de Norton de Matos, me demiti, antes que fosse demitido, da Caixa de Previdência onde trabalhava. Um certo Dr. Góis Mota, ajudante da Procuradoria-Geral da República, comandante da Brigada Naval da Legião Portuguesa e «fiscal» do comportamento político dos empregados da Caixa, de que era assessor jurídico, instaurou-nos, a mim e a outro colega, uma caricatura de processo disciplinar, durante o qual me disse (sic) que se os meus camaradas tivessem ganho ele estaria pendurado num candeeiro da Avenida... A minha culpa visível tinha sido, simplesmente, a de não acatar a ordem de que todo o pessoal deveria concentrar-se, no dia da eleição, à porta da secção de voto do Liceu de Camões, porque ele, Góis Mota, segundo dizia, requerera e tinha em seu poder as certidões de eleitor de todos nós, de modo a que pudéssemos ir votar a uma secção que não fosse a nossa. O legionário Góis Mota, ajudante do Procurador da República, estava a mentir: votei na Graça, como devia, e ninguém me disse que, por ter sido passada certidão de eleitor, não podia votar ali. (Na eleição seguinte o meu nome deixaria de constar dos cadernos eleitorais...)
A carta que tinha agora nas mãos estava assinada por Madalena O’Neill e recordava-me, como se recorda um sonho, os dias em que, a pedido do pai, eu frequentara a sua casa da Junqueira para organizar, classificar e arrumar a velha biblioteca da família. Eis a história:
«Há uns anos, não tão poucos como isso, que uma menina, ainda criança, esperava ansiosamente por um senhor que, aos olhos dela, era muito alto e muito magro, com uns óculos de aro castanho e uma camisa branca. Talvez uns suspensórios a segurar as calças!!! Tenho essa impressão, mas já não sei.
«Essa menina tinha uma paixão secreta por esse senhor, digo paixão porque não encontro outra palavra mais adequada, nada tem que ver com a de um adulto. Recusava ir para o quarto antes de ele chegar, mas, quando ele chegava, sua timidez tornava-a muda, e limitava-se a ficar ali em silêncio a vê-lo trabalhar.
«Um dia seu pai recebeu de presente um pisa-papéis que ela achava uma beleza. Era todo de vidro e tinha um efeito colorido lá dentro, não sei se não tinha também qualquer anúncio de qualquer produto, o que com certeza estragava a peça, mas para todos os efeitos ela gostava imenso daquela bola de vidro e não tirava os olhos dela. O pai, quando reparou na validade que aquele objeto tinha para sua filha, deu-lho, e foi esse um dos dias mais felizes da vida dela. Nunca mais se separou da tal bola, que para ela era mágica.
«Um dia chegou em que ela quis que o tal senhor soubesse o que ela sentia por ele e, despedindo-se da sua querida bola, que também tinha tido um lugar no seu coração, entregou-lha sem pestanejar. O tal senhor, que olhava para tudo admirado, ainda perguntou: “Tem a certeza de que mo quer dar?” Ao que ela, embaraçada, mas com firmeza, disse que sim. Não foi capaz de dizer mais nada e ficou felicíssima por ter tido a coragem de fazer tal gesto.
«Passaram-se algumas dezenas de anos e a tal criança de outrora, que agora já é bem crescida, continua a lembrar-se de tudo, porque tudo de importante que se passa num coração que ainda não está muito estragado com esta vida cheia de obstáculos, fica lá registado para sempre. Não sei se poderei dizer o mesmo do tal senhor, que, apesar de ter recebido um presente saído dum coração tão aberto, talvez não lhe tenha dado qualquer valor, não digo ao objeto, mas ao ato daquela criança. Eu gostaria de saber que sim, mas tenho quase a certeza de que a resposta é não, porque as pessoas, quando chegam a adultos, fecham os corações e abrem as cabeças, onde só passa a existir o racional.»
A partir daqui, a carta trata de um assunto de natureza profissional, que não tem que entrar nestes Cadernos. Responderei a Madalena O’Neill um destes dias, depois de ter posto em ordem a minha própria memória. Uma coisa eu sei: que não usava suspensórios...
Vou andando em direção à Escola Secundária dos Anjos, onde terei um encontro com alunos para lhes falar do Ano da Morte de Ricardo Reis, vou a pensar, agradecido, na menina que gostava de mim e me ofereceu, como prova do seu amor, há quarenta anos, o pesa-papéis de vidro que lhe tinha sido dado pelo pai, e eis que uma outra menina vem direita a mim com uma flor na mão, dessas sem nome que a primavera faz nascer entre as pedras, e pergunta-me: «Quer?»
in "Cadernos de Lanzarote - volume IV, 28 de maio de 1996