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Outros Cadernos de Saramago

Outros Cadernos de Saramago

28 Mai, 2012

Memórias de 1934

Encontro na Caminho algumas cartas de leitores que ainda não conhecem o meu endereço... Uma delas traz no remetente um apelido que me é familiar desde há mais de sessenta anos, desde 1934 precisamente, quando, tendo deixado o Liceu de Gil Vicente, comecei a frequentar a Escola Industrial de Afonso Domingues, donde sairia com o curso de serralheiro mecânico. Durante o tempo que ali andei, foi meu professor de Mecânica e de Matemática o engenheiro Jorge O’Neill, que, catorze anos mais tarde, viria a dar-me emprego na Companhia Previdente (de que era administrador-delegado), quando, na sequência da campanha presidencial de Norton de Matos, me demiti, antes que fosse demitido, da Caixa de Previdência onde trabalhava. Um certo Dr. Góis Mota, ajudante da Procuradoria-Geral da República, comandante da Brigada Naval da Legião Portuguesa e «fiscal» do comportamento político dos empregados da Caixa, de que era assessor jurídico, instaurou-nos, a mim e a outro colega, uma caricatura de processo disciplinar, durante o qual me disse (sic) que se os meus camaradas tivessem ganho ele estaria pendurado num candeeiro da Avenida... A minha culpa visível tinha sido, simplesmente, a de não acatar a ordem de que todo o pessoal deveria concentrar-se, no dia da eleição, à porta da secção de voto do Liceu de Camões, porque ele, Góis Mota, segundo dizia, requerera e tinha em seu poder as certidões de eleitor de todos nós, de modo a que pudéssemos ir votar a uma secção que não fosse a nossa. O legionário Góis Mota, ajudante do Procurador da República, estava a mentir: votei na Graça, como devia, e ninguém me disse que, por ter sido passada certidão de eleitor, não podia votar ali. (Na eleição seguinte o meu nome deixaria de constar dos cadernos eleitorais...)

A carta que tinha agora nas mãos estava assinada por Madalena O’Neill e recordava-me, como se recorda um sonho, os dias em que, a pedido do pai, eu frequentara a sua casa da Junqueira para organizar, classificar e arrumar a velha biblioteca da família. Eis a história:

«Há uns anos, não tão poucos como isso, que uma menina, ainda criança, esperava ansiosamente por um senhor que, aos olhos dela, era muito alto e muito magro, com uns óculos de aro castanho e uma camisa branca. Talvez uns suspensórios a segurar as calças!!! Tenho essa impressão, mas já não sei.

«Essa menina tinha uma paixão secreta por esse senhor, digo paixão porque não encontro outra palavra mais adequada, nada tem que ver com a de um adulto. Recusava ir para o quarto antes de ele chegar, mas, quando ele chegava, sua timidez tornava-a muda, e limitava-se a ficar ali em silêncio a vê-lo trabalhar.

«Um dia seu pai recebeu de presente um pisa-papéis que ela achava uma beleza. Era todo de vidro e tinha um efeito colorido lá dentro, não sei se não tinha também qualquer anúncio de qualquer produto, o que com certeza estragava a peça, mas para todos os efeitos ela gostava imenso daquela bola de vidro e não tirava os olhos dela. O pai, quando reparou na validade que aquele objeto tinha para sua filha, deu-lho, e foi esse um dos dias mais felizes da vida dela. Nunca mais se separou da tal bola, que para ela era mágica.

«Um dia chegou em que ela quis que o tal senhor soubesse o que ela sentia por ele e, despedindo-se da sua querida bola, que também tinha tido um lugar no seu coração, entregou-lha sem pestanejar. O tal senhor, que olhava para tudo admirado, ainda perguntou: “Tem a certeza de que mo quer dar?” Ao que ela, embaraçada, mas com firmeza, disse que sim. Não foi capaz de dizer mais nada e ficou felicíssima por ter tido a coragem de fazer tal gesto.

«Passaram-se algumas dezenas de anos e a tal criança de outrora, que agora já é bem crescida, continua a lembrar-se de tudo, porque tudo de importante que se passa num coração que ainda não está muito estragado com esta vida cheia de obstáculos, fica lá registado para sempre. Não sei se poderei dizer o mesmo do tal senhor, que, apesar de ter recebido um presente saído dum coração tão aberto, talvez não lhe tenha dado qualquer valor, não digo ao objeto, mas ao ato daquela criança. Eu gostaria de saber que sim, mas tenho quase a certeza de que a resposta é não, porque as pessoas, quando chegam a adultos, fecham os corações e abrem as cabeças, onde só passa a existir o racional.»

A partir daqui, a carta trata de um assunto de natureza profissional, que não tem que entrar nestes Cadernos. Responderei a Madalena O’Neill um destes dias, depois de ter posto em ordem a minha própria memória. Uma coisa eu sei: que não usava suspensórios...

Vou andando em direção à Escola Secundária dos Anjos, onde terei um encontro com alunos para lhes falar do Ano da Morte de Ricardo Reis, vou a pensar, agradecido, na menina que gostava de mim e me ofereceu, como prova do seu amor, há quarenta anos, o pesa-papéis de vidro que lhe tinha sido dado pelo pai, e eis que uma outra menina vem direita a mim com uma flor na mão, dessas sem nome que a primavera faz nascer entre as pedras, e pergunta-me: «Quer?»

 

in "Cadernos de Lanzarote - volume IV, 28 de maio de 1996

16 Mai, 2012

Carlos Fuentes

Carlos Fuentes, criador da expressão “território de La Mancha”, uma fórmula feliz que passou a exprimir a diversidade e a complexidade das vivências existenciais e culturais que unem a Península Ibérica e a América do Sul, acaba de receber em Toledo o Prémio D. Quixote. O que se segue é a minha homenagem ao escritor, ao homem, ao amigo.O primeiro livro de Carlos Fuentes que li foi “Aura”. Embora não tenha voltado a ele, guardei até hoje (mais de quarenta anos passaram) a impressão de haver penetrado num mundo diferente de tudo o que conhecera até então, uma atmosfera composta de objectividade realista e de misteriosa magia, em que estes contrários, afinal mais aparentes que efectivos, se fundiam para criar no espírito do leitor uma envolvência em todos os aspectos singular. Não foram muitos os casos em que o encontro de um livro tenha deixado na minha memória uma tão intensa e perene lembrança.Não era um tempo em que as literaturas americanas (às do Sul me refiro) gozassem de um especial favor do público ilustrado. Fascinados desde gerações pelas lumières francesas, hoje empalidecidas, observávamos com certa displicência (a fingida displicência da ignorância que sofre por ter de reconhecer-se como tal) o que se ia fazendo para baixo do rio Grande e que, para agravar a situação, embora pudesse viajar com relativo à vontade a Espanha, mal se detinha em Portugal. Havia lacunas, livros que simplesmente não apareciam nas livrarias, e também a confrangedora falta de uma crítica competente que nos ajudasse a encontrar, no pouco que ia sendo posto ao nosso alcance, o muito de excelente que aquelas literaturas, lutando em muitos casos com dificuldades semelhantes, iam tenazmente elaborando. No fundo, talvez houvesse uma outra explicação: os livros viajavam pouco, mas nós ainda viajávamos menos.A minha primeira viagem ao México foi para participar, em Morelia, num congresso sobre a crónica. Não tive então tempo para visitar livrarias, mas já começara a frequentar com assiduidade a obra de Carlos Fuentes através, por exemplo, da leitura de livros fundamentais, como foram os casos de “La región más transparente” e “La muerte de Artemio Cruz”. Tornou-se-me claro que estava ali um escritor de altíssima categoria artística e de uma incomum riqueza conceptual. Mais tarde, um outro romance extraordinário, “Terra nostra”, rasgou-me novas perspectivas, e daí em diante, sem que seja necessário referir aqui outros títulos (salvo “El espejo enterrado”, livro de fundo, indispensável a um conhecimento sensível e consciente da América do Sul, como sempre preferi chamar-lhe), reconheci-me, definitivamente, como devoto admirador do autor de “Gringo Viego”. Conhecia já o escritor, faltava-me conhecer o homem.Agora, uma confissão. Não sou pessoa facilmente intimidável, muito pelo contrário, mas os meus primeiros contactos com Carlos Fuentes, em todo o caso sempre cordiais, como era lógico esperar de duas pessoas bem educadas, não foram fáceis, não por culpa dele, mas por uma espécie de resistência minha a aceitar com naturalidade o que em Carlos Fuentes era naturalíssimo, isto é, a sua forma de vestir. Todos sabemos que Fuentes veste bem, com elegância e bom gosto, a camisa sem uma ruga, as calças de vinco perfeito, mas, por ignotas razões, eu pensava que um escritor, especialmente se pertencia àquela parte do mundo, não deveria vestir assim. Engano meu. Afinal, Carlos Fuentes tornou compatível a maior exigência crítica, o maior rigor ético, que são os seus, com uma gravata bem escolhida. Não é pequena cousa, creiam-me.

 

(14 de Outubro de 2008)

28 de agosto de 1997

Carlos Fuentes, o grande escritor mexicano, a quem admiro desde que, há muitos anos já, li esse livro fascinante que é Aura, passou ontem por Lanzarote. Veio com sua mulher, a jornalista Silvia Lemus, estiveram algumas horas (duas delas ocupadas por uma entrevista que dei a Silvia), e juntos visitámos a Fundação César Manrique. Ficou claro, logo desde o primeiro momento, que estávamos a colocar a primeira pedra de uma amizade que se consolidará (estou certo disso) na viagem que Pilar e eu faremos, no próximo ano, ao México. Registo aqui o recolhimento com que Carlos Fuentes leu o poema de Rafael Alberti dedicado a César Manrique, aquele que está na Fundação: Vuelvo a encontrar mi azul... No fim, Fuentes disse: «Poetas como Alberti e Neruda convertem em poesia tudo o que tocam.» Foi um dia grande para Lanzarote.

 

in Cadernos de Lanzarote, volume V

 

«Os desencontros e turbulências das relações entre Portugal e Brasil resultam provavelmente de um equí- voco. Meteu-se-nos na cabeça que estamos obrigados a unir-nos por um amor mais que perfeito, por uma com- preensão exemplar, por uma ligação espiritual sem par no universo. E que se não puder ser assim, então não vale a pena. Oscilamos portanto entre o tudo e o nada, como se andássemos a incubar desde há séculos uma paixão tem- pestuosa (em todo o caso mais sofrida do lado de cá do que sentida do lado de lá), a qual, não tendo podido alcançar a consumação plena, passou a alimentar-se de pequenas anedotas, de pequenos despeitos, de pequenos rancores, sempre demonstrativos de que a culpa é deles. A história do velho, do rapaz e do burro parece ter sido escrita para mostrar como no dia a dia da relação de por- tugueses e brasileiros uns com os outros se armam con- flitos, se insinuam suspeitas de segundas intenções, se desenham conscientes ou inconscientes desdéns. Claro que o símile não é exato em todos os seus pontos. Se é certo que os portugueses não se oporiam demasiado a desempenhar o papel do velho (a isso aconselhariam os séculos de história de que tanto se gabam), se a persona- gem do moço assentaria como uma luva aos brasileiros (independentes, por assim dizer, desde anteontem), já é duvidoso haver alguém em qualquer das nossas duas margens atlânticas disposto a reconhecer-se no burro, mesmo sendo o que menos culpas tem na historieta. Que para ilustração das novas gerações brevemente se narra. «(O avô ia a pé e o neto no burro. Cruzaram-se com uma pessoa a quem pareceu o caso mal: que vergonha, o pobre velho à pata e o moço regalado de poleiro. Atento às bocas do mundo, o avô fez descer o rapaz e foi ocupar-lhe o lugar no lombo do jumento. Imediatamente protestou outro contra o atentado: o infeliz menino a pisar o pó dos caminhos enquanto o malandro do velho viajava repim- pado na albarda. Desceu então o avô e resolveu que conti- nuariam os dois a pé, deixando ir o burro sem carga. Mas não tardou que outro passante se risse da estupidez: aque- les tinham uma besta de carga e não se serviam dela. Perante isto, o velho tornou a sentar o neto no burro e montou atrás dele, mas logo surgiu outra pessoa a protes- tar contra a crueldade com que os desapiedados tratavam o animalzinho, obrigando-o a aguentar dupla carga. Então o velho disse: “Deixemos que falem estes e vamos nós como antes.” Fez subir o neto para o dorso do jumento, e, com a lição aprendida, seguiram os três o seu destino.) «Há muito desta história de velho, rapaz e burro nas relações luso-brasileiras. Não damos um passo sem que nos atropelem dificuldades, umas nascidas ali, outras vin- das de longe mas renovadas e melhoradas para a ocasião. Ainda as assinaturas não secaram em alguns tratados e acordos laboriosamente tecidos e já os patriotas encarta- dos de um lado e do outro começam a gritar que eles nos enganaram. Nunca se viu gente que tanto desconfie do parceiro a quem ao mesmo tempo vem chamando irmão e amigo. Por cima da mesa assiste-se ao florir contínuo duma retórica vã, bordada de artifícios e aparências, mas por baixo fervem as chacotas e as piadas insultantes. Põe-se milagrosamente de pé, tem-te não caias, uma CPLP, e imediatamente se começa a minar-lhe o chão para que se desmorone e afunde. Proclamamos reciprocidades de direitos e logo tratamos de fechar a porta a quem os rei- vindica. Imaginámos uma fraternidade que não existe de facto, fizemos dela um teto sob o qual nos abrigaríamos juntinhos, como irmãos ou primos carnais, e todos os dias vemos que o tal teto não tem colunas que duradouramente o sustentem, que quase tudo o que debaixo dele se diz e faz será para desmentir ou anular no dia seguinte. «Ponhamos então o amor de parte, deixemo-nos de irmandades postiças, comporte-se Portugal como se o Bra- sil fosse um outro qualquer país com que simplesmente mantemos boas relações. Faça o Brasil o mesmo em rela- ção a nós. Depois identifiquemos interesses comuns aos dois países, definamos claramente as opções, ponhamos os meios necessários, e cometido isto, trabalhemos juntos. Sem discursos. Quem sabe se o amor (um verdadeiro amor feito de respeito mútuo e de dignidade discreta) não virá depois? Já se tentou tudo, e não deu resultado. Ao menos o avô da história acabou por compreender.»

(artigo publicado na revista Visão e incluído nos Cadernos de Lanzarote, Diário V, 17 de setembro de 1997)

Vista à distância, a humanidade é uma coisa muito bonita, com uma larga e suculenta história, muita literatura, muita arte, filosofias e religiões em barda, para todos os apetites, ciência que é um regalo, desenvolvimento que não se sabe aonde vai parar, enfim, o Criador tem todas as razões para estar satisfeito e orgulhoso da imaginação de que a si mesmo se dotou. Qualquer observador imparcial reconheceria que nenhum deus de outra galáxia teria feito melhor. Porém, se a olharmos de perto, a humanidade (tu, ele, nós, vós, eles, eu) é, com perdão da grosseira palavra, uma merda. Sim, estou a pensar nos mortos do Ruanda, de Angola, da Bósnia, do Curdistão, do Sudão, do Brasil, de toda a parte, montanhas de mortos, mortos de fome, mortos de miséria, mortos fuzilados, degolados, queimados, estraçalhados, mortos, mortos, mortos. Quantos milhões de pessoas terão acabado assim neste maldito seculo que está prestes a acabar? (Digo maldito e foi nele que nasci e vivo...) Por favor, alguém que me faça estas contas, dêem-me um número que sirva para medir, só aproximadamente, bem o sei, a estupidez e a maldade humana. E, já que estão com a mão na calculadora, não se esqueçam de incluir na contagem um homem de 27 anos, de profissão jogador de futebol, chamado Andrés Escobar, colombiano, assassinado a tiro e a sangue-frio, na célebre cidade de Medellín, por ter metido um golo na sua própria baliza durante um jogo do campeonato do mundo... Sem dúvida, tinha razão o Álvaro de Campos: "Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer". Sem dúvida, mas não desta maneira.

(Cadernos de Lanzarote - Diário II, 3 de julho de 1994)