03 Jul, 2009
Aparências
Suponho que no princípio dos princípios, antes de havermos inventado a fala, que é, como sabemos, a suprema criadora de incertezas, não nos atormentaria nenhuma dúvida séria sobre quem éramos e sobre a nossa relação pessoal e colectiva com o lugar em que nos encontrávamos. O mundo, obviamente, só podia ser o que os nossos olhos viam em cada momento, e também, como informação complementar não menos importante, aquilo que os restantes sentidos – o ouvido, o tacto, o olfacto, o gosto – conseguissem perceber dele. Nessa hora inicial, o mundo foi pura aparência e pura superfície. A matéria era simplesmente áspera ou lisa, amarga ou doce, azeda ou insípida, sonora ou silenciosa, com cheiro ou sem cheiro. Todas as coisas eram o que pareciam ser pelo único motivo de que não havia qualquer razão para que parecessem e fossem outra coisa. Naquelas antiquíssimas eras não nos passava pela cabeça que a matéria fosse “porosa”. Hoje, porém, embora sabedores de que desde o último dos vírus até ao universo, não somos mais do que organizações de átomos e que no interior deles, além da massa que lhes é própria, ainda sobra espaço para o vácuo (o compacto absoluto não existe, tudo é penetrável), continuamos, tal como o haviam feito os nossos antepassados das cavernas, a apreender, identificar e reconhecer o mundo segundo a aparência com que se nos apresenta. Imagino que o espírito filosófico e o espírito científico, coincidentes na sua origem, deverão ter-se manifestado no dia em que alguém teve a intuição de que essa aparência, ao mesmo tempo que imagem exterior capturável pela consciência e por ela utilizada, podia ser, também, uma ilusão dos sentidos. Se bem que habitualmente mais referida ao mundo moral que ao mundo físico, é conhecida a expressão popular em que aquela intuição veio a plasmar-se: “As aparências iludem.” Ou enganam, que vem a dar no mesmo.