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Outros Cadernos de Saramago

Outros Cadernos de Saramago

À porta de Lanzarote, à porta da casa que, se a sorte ajudasse, talvez pudesse vir a ser a sua nova casa. A vinte metros da costa, em Costa Teguise, quando certamente já trocavam uns com os outros risos e palavras de alegria por terem conseguido chegar a bom porto, a rebentação fez virar o caiúco. Haviam atravessado os cem quilómetros que separam a ilha da costa africana e vieram morrer a vinte metros da salvação. Dos mais de trinta imigrantes a quem a necessidade extrema tinha obrigado a enfrentar os perigos do mar, em sua maioria jovens e adolescentes, vinte e quatro morreram afogados, entre eles uma mulher grávida e algumas crianças de poucos anos. Seis salvaram-se graças à coragem e à abnegação de dois surfistas que se lançaram à agua e os livraram de uma morte que sem a sua intervenção teria sido inevitável.

Este é, nas palavras mais simples e directas que pude encontrar, o quadro do que aconteceu aqui. Não sei que mais poderia dizer. Hoje faltam-me as palavras e sobram as emoções. Até quando?

Fica aqui uma recomendação: vejam o vídeo de que deixo a respectiva ligação. Trata-se de uma parte, que alguém colocou no You Tube, de um magnífico programa que sobre o drama da emigração realizou Marisa Márquez para a Televisão Espanhola. O fragmento que circula pela rede corresponde à intervenção de Pilar, que se compadece das vítimas e interpela os responsáveis.

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16 Fev, 2009

Maus tratos

Sou em geral conhecido como pessimista. Ao contrário do que alguma vez possa ter parecido, dada a insistência com que afirmo o meu radical cepticismo sobre a possibilidade de qualquer melhoria efectiva e substancial da espécie dentro do que em tempos não muito distantes se chamou progresso moral, preferiria ser optimista, mesmo que fosse apenas por ainda conservar a esperança de que o sol, por ter nascido todos os dias até hoje, nasça também amanhã. Nascerá, mas lá chegará também o dia em que ele se acabe. O motivo destas reflexões de abertura é o mau trato conjugal ou paraconjugal, a insana perseguição da mulher pelo homem, seja ele marido, noivo ou amante. A mulher, historicamente submetida ao poder masculino, foi reduzida a algo sem mais préstimo que o de ser criada do homem e simples restauradora da sua força de trabalho, e, mesmo agora, quando a vemos por toda a parte, liberta de algumas ataduras, exercer actividades que a vaidade masculina presumia de exclusivas do varão, parece que não queremos dar-nos conta de que a esmagadora maioria das mulheres continua a viver num sistema de relações pouco menos que medievais. São espancadas, brutalizadas sexualmente, escravizadas por tradições, costumes e obrigações que elas não escolheram e que continuam a mantê-las submetidas à tirania masculina. E, quando chega a hora, matam-nas.

A escola finge ignorar esta realidade, o que não pode surpreender se pensarmos que a capacidade formativa do ensino se encontra reduzida ao zero absoluto. A família, lugar por excelência de todas as contradições, ninho perfeito de egoísmos, empresa em falência permanente, está a viver a mais grave crise de toda a sua história. Os Estados partem do exacto princípio de que todos teremos de morrer e de que as mulheres não poderiam ser excepção. Para algumas imaginações delirantes, morrer às mãos do esposo, do noivo ou do amante, a tiro ou à facada, talvez seja mesmo a maior prova de amor mútuo, ele matando, ela morrendo. Às negruras da mente humana tudo é possível.

Que fazer? Outros o saberão embora não o tenham dito. Uma vez que a delicada sociedade em que vivemos se escandalizaria com medidas de exclusão social permanente para este tipo de crimes, ao menos que se agravem até ao máximo as penas de prisão, excluindo decisivamente as reduções de pena por bom comportamento. Por bom comportamento, por favor, não me façam rir.