Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Outros Cadernos de Saramago

Outros Cadernos de Saramago

28 Out, 2008

Novo capitalismo?

Para que continue a reflexão, o Manifesto abre por mais um dia o Caderno.Há uns dias atrás, várias pessoas de diversos países e diferentes posições políticas, subscrevemos o texto que reproduzo abaixo. É uma chamada de atenção, um protesto, a expressão do alarme que sentimos diante da crise e das possíveis saídas que se afiguram. Não podemos ser cúmplices.

“Novo capitalismo?”

Chegou o momento da mudança à escala pública e individual. Chegou o momento da justiça.A crise financeira aí está de novo destroçando as nossas economias, desferindo duros golpes nas nossas vidas. Na última década, os seus abanões têm sido cada vez mais frequente e dramáticos. Ásia Oriental, Argentina, Turquia, Brasil, Rússia, a hecatombe da Nova Economia, provam que não se trata de acidentes conjunturais fortuitos que acontecem na superfície da vida económica mas que estão inscritos no próprio coração do sistema.Essas rupturas, que acabaram produzindo uma contracção funesta da vida económica actual, com o argumento do desemprego e da generalização da desigualdade, assinalam a quebra do capitalismo financeiro e significam o definitivo ancilosamento da ordem económica mundial em que vivemos. Há, pois, que transformá-lo radicalmente.Na entrevista com o presidente Bush, Durão Barroso, Presidente da Comissão Europeia, declarou que a presente crise deve conduzir a uma “nova ordem económica mundial”, o que é aceitável, se esta nova ordem se orientar pelos princípios democráticos – que nunca deveriam ter sido abandonados – da justiça, liberdade, igualdade e solidariedade.As “leis do mercado” conduziram a uma situação caótica que levou a um “resgate” de milhares de milhões de dólares, de tal modo que, como se referiu acertadamente, “se privatizaram os ganhos e se nacionalizaram as perdas”. Encontraram ajuda para os culpados e não para as vítimas. Esta é uma ocasião única para redefinir o sistema económico mundial a favor da justiça social.Não havia dinheiro para os fundos de combate à SIDA, nem de apoio para a alimentação no mundo… e afinal, num autêntico turbilhão financeiro, acontece que havia fundos para que não se arruinassem aqueles mesmos que, favorecendo excessivamente as bolhas informáticas e imobiliárias, arruinaram o edifício económico mundial da “globalização”.Por isto é totalmente errado que o Presidente Sarkozy tenha falado sobre a realização de todos estes esforços a cargo dos contribuintes “para um novo capitalismo”!... e que o Presidente Bush, como dele seria de esperar, tenha concordado que deve salvaguardar-se “a liberdade de mercado” (sem que desapareçam os subsídios agrícolas!)…Não: agora devemos ser resgatados, os cidadãos, favorecendo com rapidez e valentia a transição de uma economia de guerra para uma economia de desenvolvimento global, em que essa vergonha colectiva do investimento de três mil milhões de dólares por dia em armas, ao mesmo tempo que morrem de fome mais de 60 mil pessoas, seja superada. Uma economia de desenvolvimento que elimine a abusiva exploração dos recursos naturais que tem lugar na actualidade (petróleo, gás, minerais, carvão) e que faça com que se apliquem normas vigiadas por uma Nações Unidas refundadas – que envolvam o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial “para a  reconstrução e desenvolvimento” e a Organização Mundial de Comércio, que não seja um clube privado de nações, mas sim uma instituição da ONU – que disponham dos meios pessoais, humanos e técnicos necessários para exercer a sua autoridade jurídica e ética de forma eficaz.Investimento nas energias renováveis, na produção de alimentos (agricultura e aquicultura), na obtenção e condução de água, na saúde, educação, habitação… para que a “nova ordem económica” seja, por fim, democrática e beneficie as pessoas. O engano da globalização e da economia de mercado deve terminar! A sociedade civil já não será um espectador resignado e, se necessário for, utilizará todo o poder de cidadania que hoje, com as modernas tecnologias de comunicação, possui.Novo capitalismo? Não!Chegou o momento da mudança à escala pública e individual. Chegou o momento da justiça.Federico Mayor ZaragozaFrancisco AltemirJosé SaramagoRoberto SavioMário SoaresJosé Vidal Beneyto

A história da adaptação de Ensaio sobre a cegueira ao cinema passou por altos e baixos desde que Fernando Meirelles, aí pelo ano de 1997, perguntou a Luiz Schwarcz, meu editor brasileiro, se eu estaria interessado em ceder os respectivos direitos. Recebeu como resposta uma peremptória negativa: não. Entretanto, no escritório da minha agente literária em Bad Homburg, Frankfurt, começaram a chover, e choveram durante anos, cartas, correios electrónicos, chamadas telefónicas, mensagens de toda a espécie de produtores de outros países, em particular dos Estados Unidos, com a mesma pergunta. A todos mandei dar a resposta conhecida: não. Soberba minha? Não era questão de soberba, simplesmente não tinha a certeza, nem sequer a esperança, de que o livro fosse tratado com respeito naquelas paragens. E os anos passaram. Um dia, acompanhados pela minha agente, apareceram-me em Lanzarote, vindos directamente de Toronto, dois canadianos que pretendiam fazer o filme, Niv Fichman, o produtor, e Don McKellar, o guionista. Eram gente nova, nenhum deles me fazia recordar o Cecil B. de Mille, e, depois de uma conversa franca, sem portas falsas nem reservas mentais, entreguei-lhes o trabalho. Faltava saber quem seria o director. Outros anos tiveram de passar até ao dia em que me foi perguntado o que pensava eu de Fernando Meirelles. Completamente esquecido do que havia sucedido naquele já longínquo ano de 1997, respondi que pensava bem. Tinha visto e gostado da Cidade de Deus e do Fiel Jardineiro, mas continuava sem associar o nome deste director à pessoa do outro…Finalmente, o resultado de tudo isto já está aqui. Traz o título de Blindness, com o qual se espera facilitar a sua relação com o livro no circuito internacional. Não vi qualquer motivo para discutir a escolha. Hoje, em Lisboa, foi a apresentação deste Ensaio sobre a cegueira em imagens e sons. A plateia estava bem servida de jornalistas que espero dêem boa conta do recado. Amanhã será a ante-estreia. Conversámos sobre estes episódios já históricos e, em dado momento, Pilar, a mais prática e objectiva de todas as subjectividades que conheço, lançou uma ideia: “No meu entender, o livro antecipou os efeitos da crise que estamos a sofrer. As pessoas, desesperadas, correndo por Wall Street, de banco em banco antes que o dinheiro se acabe, não são outras que as que se movem, cegas, sem rumo, no romance e agora no filme. A diferença é que não têm uma mulher do médico que as guie, que as proteja”. Reparando bem, a andaluza é capaz de ter razão.