22 Ago, 2012
Cão com lágrimas
22 de agosto de 1994
Pela primeira vez em tanto subir e descer de avião, pudemos ver, do alto, a casa. Com a família toda ausente, em férias, e Luis a trabalhar à hora a que chegámos, só tínhamos o Pepe a receber-nos. O pobre animal nem podia acreditar que estávamos ali. Saltava de um para outro, enroscava-se nos nossos braços, gemia de um modo quase humano, e diabos me levem se não eram lágrimas, das autênticas, o que víamos correr-lhe dos olhos. A este cão, com perdão da vulgaridade, só lhe falta falar. Mais tarde, conversando com Pilar, manifestei uma pena: ter vivido sem cães até agora. Na Azinhaga não faltavam, já se sabe, houve-os em casa dos meus avós, mas não eram meus, olhavam-me desconfiados quando eu lá aparecia depois de uma ausência e só passados uns dias é que começavam a tolerar-me. Além disso, estavam ali para guardar a casa e o quintal, valiam pela utilidade que tinham e só enquanto a tivessem. Não me lembro de que algum deles chegasse a velho. Pensei nos golfinhos de Edmonton, tão bem ensinados, e, embora não goste de ver exibições de animais amestrados, achei que alguma razão profunda terá de haver para que certos animais consigam suportar a presença humana... Perdi essa confiança à noite, vendo na televisão como um elefante, num circo, matava a patadas e golpes da tromba o domador, enquanto a música tocava e o público cria que tudo aquilo fazia parte do espetáculo. À noite, quando me deitei, extenuado por uma viagem de quase vinte e quatro horas entre voos e esperas de aeroporto, custou-me a adormecer: via os golfinhos sorridentes, o elefante enfurecido calcando o corpo já destroçado do domador. Foi então que me lembrei de uma velha crónica, de 1968, Os Animais Doidos de Cólera, em que imaginei a insurreição de todos os animais e a morte do último homem devorado por formigas, pela primeira vez lutando, não contra a humanidade, mas, agora já inutilmente, para defender o que restava dela... E também me lembrei do poema 12 de O Ano de 1993, aquele que acaba assim: «Privadas dos animais domésticos as pessoas dedicaram-se ativamente ao cultivo de flores / Destas não há que esperar mal se não for dada excessiva importância ao recente caso de uma rosa carnívora»... Alguma coisa está definitivamente errada no ser humano. Morrerei sem saber o quê.
(Cadernos de Lanzarote, 2)
Pela primeira vez em tanto subir e descer de avião, pudemos ver, do alto, a casa. Com a família toda ausente, em férias, e Luis a trabalhar à hora a que chegámos, só tínhamos o Pepe a receber-nos. O pobre animal nem podia acreditar que estávamos ali. Saltava de um para outro, enroscava-se nos nossos braços, gemia de um modo quase humano, e diabos me levem se não eram lágrimas, das autênticas, o que víamos correr-lhe dos olhos. A este cão, com perdão da vulgaridade, só lhe falta falar. Mais tarde, conversando com Pilar, manifestei uma pena: ter vivido sem cães até agora. Na Azinhaga não faltavam, já se sabe, houve-os em casa dos meus avós, mas não eram meus, olhavam-me desconfiados quando eu lá aparecia depois de uma ausência e só passados uns dias é que começavam a tolerar-me. Além disso, estavam ali para guardar a casa e o quintal, valiam pela utilidade que tinham e só enquanto a tivessem. Não me lembro de que algum deles chegasse a velho. Pensei nos golfinhos de Edmonton, tão bem ensinados, e, embora não goste de ver exibições de animais amestrados, achei que alguma razão profunda terá de haver para que certos animais consigam suportar a presença humana... Perdi essa confiança à noite, vendo na televisão como um elefante, num circo, matava a patadas e golpes da tromba o domador, enquanto a música tocava e o público cria que tudo aquilo fazia parte do espetáculo. À noite, quando me deitei, extenuado por uma viagem de quase vinte e quatro horas entre voos e esperas de aeroporto, custou-me a adormecer: via os golfinhos sorridentes, o elefante enfurecido calcando o corpo já destroçado do domador. Foi então que me lembrei de uma velha crónica, de 1968, Os Animais Doidos de Cólera, em que imaginei a insurreição de todos os animais e a morte do último homem devorado por formigas, pela primeira vez lutando, não contra a humanidade, mas, agora já inutilmente, para defender o que restava dela... E também me lembrei do poema 12 de O Ano de 1993, aquele que acaba assim: «Privadas dos animais domésticos as pessoas dedicaram-se ativamente ao cultivo de flores / Destas não há que esperar mal se não for dada excessiva importância ao recente caso de uma rosa carnívora»... Alguma coisa está definitivamente errada no ser humano. Morrerei sem saber o quê.
(Cadernos de Lanzarote, 2)