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Outros Cadernos de Saramago

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16 Ago, 2012

Salvar Badajoz

9 de fevereiro de 1995

Para a história da aviação. Em Badajoz foi hoje dado nome a uma rua. O motivo, a causa, o pretexto, a razão, ou como se quiser chamar-lhes, já têm mais de cinquenta
anos, e muito fortes terão sido para sobreviverem aos olvidos acumulados de duas gerações, justificados estes, em geral, pelo facto de as pessoas terem mais em que pensar. Não direi eu que os habitantes de Badajoz levaram este meio século e picos a transmitir uns aos outros o certificado de uma dívida que um dia teria de ser paga,
o que digo é que algum badajoceño escrupuloso deve ter tido um rebate de consciência mais ou menos nestes termos: «Muitos dos que hoje vivem estariam mortos, outros não teriam chegado a nascer.» Parecerá um enigma da Esfinge, e afinal é só uma história da aviação.
Há cinquenta e tantos anos, durante a guerra civil, um aviador republicano teve ordem de ir bombardear Badajoz. Foi lá, sobrevoou a cidade, olhou para baixo. E que viu quando olhou para baixo? Viu gente, viu pessoas. Que fez então o guerreiro? Desviou o avião e foi largar as bombas no campo. Quando regressou à base e deu conta do resultado da missão, comunicou que lhe parecia que tinha matado uma vaca. «Então, Badajoz?», perguntou o capitão. «Nada, havia lá gente», respondeu o piloto. «Pois», fez o superior, e, por impossível que pareça, o aviador não foi levado a conselho de guerra... Agora há em Badajoz uma rua com o nome de um homem que um dia teve pessoas na mira da sua bomba e pensou que essa era justamente uma boa razão para não a largar.
Chove depois de quatro meses sem cair uma gota. O vento tinha começado a rodar para noroeste ontem ao princípio da noite. Esta manhã, nuvens baixas, cinzentas, avançavam das bandas de Femés. Para leste, o céu ainda estava meio descoberto, mas o azul já tinha um tom aguado, sinal de chuva para breve. A meio do dia o vento cresceu, as nuvens desceram mais, começaram a descair pelas encostas dos montes, quase roçando o chão, e em pouco tempo taparam todo o horizonte daquele lado. Fuerteventura sumiu-se no mar. A primeira chuva limitou-se a umas esparsas e finas gotas, menos do que um chuvisco, uma poeira de água, mas quinze minutos depois já caía em fios contínuos, depois em cordas grossas que o vento vinha empurrando na nossa direção. Víamos avan- çar a chuva em cortinas sucessivas, passava diante de nós como se não tivesse intenção de deter-se, mas o chão res- sequido respirava sofregamente a água. O mais puro de todos os odores, o da terra molhada, embriagou-nos durante um instante. «Que bonito é o mundo», disse eu. Pilar, em silêncio, apoiou a cabeça no meu ombro. Agora são oito horas da noite, continua a chover. A água já deve ter chegado às raízes mais fundas.

Cadernos de Lanzarote III