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Outros Cadernos de Saramago

Outros Cadernos de Saramago

11 Out, 2011

"Claraboia" XI

Rosália não deu a «deixa», não porque estivesse farta das teorias mil vezes expostas do marido, mas porque estava demasiadamente absorta na contemplação do seu rosto, aquele rosto que, visto de perfil, como agora, parecia o de um imperador romano. A pequena irritação de Anselmo por não lhe ter sido dada oportunidade de falar foi compensada pela atenção respeitosa com que se sentia observado. Considerava a mulher muito abaixo de si, mas saber-se assim adorado lisonjeava-o, de tal modo que, de bom grado, renunciava ao gosto de evidenciar por palavras essa superioridade quando via nos olhos de Rosália o respeito e o temor.
10 Out, 2011

"Claraboia" X

Na cozinha, uma cafeteira chiava. Tia Amélia tirou-a do lume. Ouviu-se o riscar da agulha no disco, e logo a voz dramática e vibrante de Jean-Louis Barrault fez estremecer as quatro mulheres. Nenhuma se mexia. Fitavam o olho luminoso do mostrador da telefonia, como se dali viesse a música. No intervalo do primeiro disco para o segundo ouviu-se, vindo da habitação contígua, um estridor de metais num ragtime que dilacerava os ouvidos. Tia Amélia encrespou o sobrolho, Cândida suspirou, Isaura espetou com força a agulha na camisa, Adriana fuzilou a parede com um olhar mortífero.
09 Out, 2011

"Claraboia" IX

Os móveis eram pobres, mas limpos, e tinham um ar de dignidade. Não há dúvida de que, assim como os animais domésticos – o cão e o gato, pelo menos – reflectem o temperamento e o carácter dos donos, também os móveis e os objectos mais insignificantes de uma casa reflectem alguma coisa da vida dos seus proprietários. Deles se desprende frieza ou calor, cordialidade ou reserva. São testemunhas que a toda a hora estão contando, numa linguagem silenciosa, o que viram e o que sabem.
08 Out, 2011

"Claraboia" VIII

«Julieta viu Romeu», pensou Abel. «Que irá passar-se?» Levantou-se do muro e avançou para o meio do quintal. Lídia não deixou a janela. «Agora teria eu de exclamar: – Que resplendor abre caminho através daquela janela? É a aurora, e Julieta o Sol!»
– Boa noite – sorriu Abel.
Houve uma pausa. Depois, a voz de Lídia:
– Boa noite – e desapareceu.
Abel lançou o cigarro fora e murmurou, divertido, enquanto recolhia a casa:
– Deste final de cena é que o Shakespeare se não lembrou...
07 Out, 2011

"Claraboia" VII

Não pode a poesia ser gratuita? Pode, sem dúvida, e o mal não é nenhum. Mas, o bem? Que bem há na poesia gratuita? A poesia é, talvez, como uma fonte que corre, é como a água que nasce da montanha, simples e natural, gratuita em si mesma. A sede está nos homens, a necessidade está nos homens, e é só porque elas existem que a água deixa de ser desinteressada. Mas será assim a poesia? Nenhum poeta, como nenhum homem seja ele quem for, é simples e natural. E Pessoa menos que qualquer outro. Quem tiver sede de humanidade não a irá matar nos versos de Fernando Pessoa: será como se bebesse água salgada. E, contudo, que admirável poesia e que fascinação! Gratuita, sim, mas isso que importa se desço ao fundo de mim mesmo e me acho gratuito e inútil?
06 Out, 2011

"Claraboia" VI

Estava só. O cigarro ardia lentamente entre os dedos. Estava só como três anos antes, quando conhecera Paulino Morais. Acabara-se. Era preciso recomeçar. Recomeçar. recomeçar...
Devagar, duas lágrimas brilharam-lhe nos olhos. Oscilaram um momento, suspensas da pálpebra inferior. Depois, caíram. Só duas lágrimas. A vida não vale mais que duas lágrimas.
05 Out, 2011

"Claraboia" V

Num esforço lento e penoso, como se o corpo se recusasse ao movimento, levantou-se e acendeu a luz. A sala de jantar, onde se encontrava, era grande, e a lâmpada que a iluminava tão fraca que, da escuridão afastada, ficaram penumbras nos cantos. As paredes nuas, as cadeiras de espaldar vertical, duras e repelentes, a mesa sem brilho e sem flores, os móveis baços e quase desguarnecidos – e Justina sozinha, no meio deste frio, muito alta e magra, o vestido preto, e os olhos negros, profundos e calados.
04 Out, 2011

"Claraboia" IV

Empurrou-a docemente na direcção do quarto. Maria Cláudia nunca ali entrava sem se perturbar. O quarto de Lídia tinha uma atmosfera que a entontecia. Os móveis eram bonitos, como nunca vira, havia espelhos, cortinas, um sofá vermelho, um tapete felpudo no chão, frascos de perfume no toucador, um cheiro de tabaco caro, mas nada disto, isoladamente, era responsável pela sua perturbação. Talvez o conjunto, talvez a presença de Lídia, qualquer coisa imponderável e vaga, como um gás que passa através de todos os filtros e que corrói e queima.
03 Out, 2011

"Claraboia" III

É sempre a mesma história. Para uns, muito; para outros, pouco: e para outros, nada. Quando é que essa gente aprende a pagar aquilo de que precisamos para viver?
02 Out, 2011

"Claraboia" II

Sem desfalecimento, um e outro lutavam, o som com a obstinação do desespero e a certeza da morte, o silêncio com o desdém da eternidade.