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Outros Cadernos de Saramago

Outros Cadernos de Saramago

16 Dez, 2010

Ironia perfeita

Fernando Pessoa é o irónico por excelência. E toda essa invenção dos heterónimos é uma obra-prima de ironia. Esse dotar de voz própria ao conjunto de "eus" que convivem em cada um de nós parece-me a ironia perfeita.“Saramago: ‘La CE, un eufemismo”, El Independiente, Madrid, 29 de Agosto de 1987In José Saramago nas Suas Palavras

Nos meus livros, a História não aparece como reconstrução arqueológica, como se tivesse viajado ao passado, tirado uma fotografia e relatasse o que mostra essa imagem. O que eu faço nada tem a ver com isso. Eu sei ou creio saber o que se passou antes e revejo-o à luz do tempo em que vivo. Quando me perguntam se escrevo novelas históricas, respondo que não, pelo menos não no sentido oitocentista da palavra tal como o faziam Alexandre Dumas ou Walter Scott ou Flaubert em Salammbô. A minha intenção é a da procura do que caiu no esquecimento pela História.“Con el escritor portugués José Saramago: ‘La escritura es otra forma de realidad”, El País (Suplemento Cultural), Montevideo, 24 de Junho de 1994In José Saramago nas Suas Palavras
13 Dez, 2010

Desenhar sentidos

Eu entendo a História numa sentido sincrónico, onde tudo acontece simultaneamente. Em consequência, o que procura o romancista - pelo menos é o que eu tento fazer - é desenhar um sentido para todo esse caos de factos gravados na tela do tempo. Sei que esses factos se deram em distintos tempos, mas procuro encontrar um elo comum entre eles. Não se trata de escapar ao presente. Para mim, tudo o que ocorreu está a ocorrer. E isto é novo, como afirmava Benedetto Croce ao escrever: "Toda a história é história contemporânea". Se tivesse que eleger um princípio para o meu percurso na vida, seria esta frase de Croce.“Con el escritor portugués José Saramago: ‘La escritura es otra forma de realidad”, El País (Suplemento Cultural), Montevideo, 24 de Junho de 1994In José Saramago nas Suas Palavras

Discurso pronunciado no Banquete Nobel, em 10 de Dezembro de 1998Cumpriram-se hoje exactamente cinquenta anos sobre a assinatura da Declaração Universal de Direitos Humanos. Não têm faltado, felizmente, comemorações à efeméride. Sabendo-se, porém, com que rapidez a atenção se fatiga quando as circunstâncias lhe impõem que se aplique ao exame de questões sérias, não é arriscado prever que o interesse público por esta comece a diminuir a partir de amanhã. Claro que nada tenho contra actos comemorativos, eu próprio contribuí para eles, modestamente, com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a ocasião não o desaconselha, permita-se-me que pronuncie aqui umas quantas palavras mais.Como declaração de princípios que é, a Declaração Universal de Direitos Humanos não cria obrigações legais aos Estados, salvo se as respectivas Constituições estabelecem que os direitos fundamentais e as liberdades nelas reconhecidos serão interpretados de acordo com a Declaração. Todos sabemos, porém, que esse reconhecimento formal pode acabar por ser desvirtuado ou mesmo denegado na acção política, na gestão económica e na realidade social. A Declaração Universal é geralmente considerada pelos poderes económicos e pelos poderes políticos, mesmo quando presumem de democráticos, como um documento cuja importância não vai muito além do grau de boa consciência que lhes proporcione.Nestes cinquenta anos não parece que os Governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando não por força da lei, estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade que é capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante.Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os Governos, seja porque não sabem, seja porque não podem, seja porque não querem. Ou porque não lho permitem os que efectivamente governam, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a uma casca sem conteúdo o que ainda restava de ideal de democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Foi-nos proposta uma Declaração Universal de Direitos Humanos, e com isso julgámos ter tudo, sem repararmos que nenhuns direitos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem, o primeiro dos quais será exigir que esses direitos sejam não só reconhecidos, mas também respeitados e satisfeitos. Não é de esperar que os Governos façam nos próximos cinquenta anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor.Não estão esquecidos os agradecimentos. Em Frankfurt, onde estava no dia 8 de Outubro, as primeiras palavras que disse foram para agradecer à Academia Sueca a atribuição do Prémio Nobel de Literatura. Agradeci igualmente aos meus editores, aos meus tradutores e aos meus leitores. A todos volto a agradecer. E agora quero também agradecer aos escritores portugueses e de língua portuguesa, aos do passado e aos de agora: é por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar. Disse naquele dia que não nasci para isto, mas isto foi-me dado. Bem hajam, portanto.Discursos de Estocolmo
09 Dez, 2010

Duvidar de tudo

Sim, essa é a minha postura, duvidar de tudo. Se há algo que possa ser útil para o leitor, não é justamente que ele termine pensando como eu penso mas que logre colocar em dúvida o que eu digo. O melhor é que o leitor perda essa postura de respeito, de acatamento do que está escrito. Não há verdades tão fortes que não possam ser postas em dúvida. Temos de dar-nos conta de que nos estão a contar histórias. Quando se escreve a história de qualquer país, temos de saber isso. A realidade profunda é outra. O historiador, muitas vezes, é alguém que está a transmitir uma ideologia. Se fosse possível reunir numa História todas as histórias - para além da História escrita e oficial -, começaríamos a ter uma ideia sobre o que se passou na realidade.“José Saramago. Escritor. ‘Ninguna verdad es definitiva”, La Maga, Buenos Aires, 30 de Março de 1994In José Saramago nas Suas Palavras

A nossa relação com o tempo faz-se por intermédio de algo a que chamamos História e a História é algo que se escreve como consequência da eleição de dados, datas e circunstâncias que vão ser organizadas pelo historiador para que toda essa pilha de informação seja coerente consigo mesma. A História não seria mais que a tentativa de introduzir a coerência no caos dos múltiplos factos de todos os dias.“José Saramago. Escritor. ‘Ninguna verdad es definitiva”, La Maga, Buenos Aires, 30 de Março de 1994In José Saramago nas Suas Palavras
07 Dez, 2010

Câmara de espelhos

Muitas vezes são as omissões as que dariam um sentido novo a factos que parecem não ter mais que apenas um motivo. A verdade é que vivemos numa câmara de espelhos na qual tudo se reflecte em tudo e em que tudo é, por sua vez, o reflexo de si mesmo. Quando nos pintam apenas uma imagem sem ter em conta o espelho, essa imagem está incompleta.“José Saramago. Escritor. ‘Ninguna verdad es definitiva”, La Maga, Buenos Aires, 30 de marzo de 1994In José Saramago nas Suas Palavras

Que diabo é a verdade histórica? Apenas algo que foi desenhado e que logo depois de estabelecido foi rodeado de obscuridade para que a única imagem que pudesse ser vista, destacada, fosse essa que se quer mostrar como verdade. A tarefa é retirar tudo o que está a negro, saber o que ficou sem contar, sem mostrar.“José Saramago. Escritor. ‘Ninguna verdad es definitiva”, La Maga, Buenos Aires, 30 de marzo de 1994In José Saramago nas Suas Palavras