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Outros Cadernos de Saramago

Outros Cadernos de Saramago

14 Out, 2008

Carlos Fuentes

Carlos Fuentes, criador da expressão “território de La Mancha”, uma fórmula feliz que passou a exprimir a diversidade e a complexidade das vivências existenciais e culturais que unem a Península Ibérica e a América do Sul, acaba de receber em Toledo o Prémio D. Quixote. O que se segue é a minha homenagem ao escritor, ao homem, ao amigo.O primeiro livro de Carlos Fuentes que li foi “Aura”. Embora não tenha voltado a ele, guardei até hoje (mais de quarenta anos passaram) a impressão de haver penetrado num mundo diferente de tudo o que conhecera até então, uma atmosfera composta de objectividade realista e de misteriosa magia, em que estes contrários, afinal mais aparentes que efectivos, se fundiam para criar no espírito do leitor uma envolvência em todos os aspectos singular. Não foram muitos os casos em que o encontro de um livro tenha deixado na minha memória uma tão intensa e perene lembrança.Não era um tempo em que as literaturas americanas (às do Sul me refiro) gozassem de um especial favor do público ilustrado. Fascinados desde gerações pelas lumières francesas, hoje empalidecidas, observávamos com certa displicência (a fingida displicência da ignorância que sofre por ter de reconhecer-se como tal) o que se ia fazendo para baixo do rio Grande e que, para agravar a situação, embora pudesse viajar com relativo à vontade a Espanha, mal se detinha em Portugal. Havia lacunas, livros que simplesmente não apareciam nas livrarias, e também a confrangedora falta de uma crítica competente que nos ajudasse a encontrar, no pouco que ia sendo posto ao nosso alcance, o muito de excelente que aquelas literaturas, lutando em muitos casos com dificuldades semelhantes, iam tenazmente elaborando. No fundo, talvez houvesse uma outra explicação: os livros viajavam pouco, mas nós ainda viajávamos menos.A minha primeira viagem ao México foi para participar, em Morelia, num congresso sobre a crónica. Não tive então tempo para visitar livrarias, mas já começara a frequentar com assiduidade a obra de Carlos Fuentes através, por exemplo, da leitura de livros fundamentais, como foram os casos de “La región más transparente” e “La muerte de Artemio Cruz”. Tornou-se-me claro que estava ali um escritor de altíssima categoria artística e de uma incomum riqueza conceptual. Mais tarde, um outro romance extraordinário, “Terra nostra”, rasgou-me novas perspectivas, e daí em diante, sem que seja necessário referir aqui outros títulos (salvo “El espejo enterrado”, livro de fundo, indispensável a um conhecimento sensível e consciente da América do Sul, como sempre preferi chamar-lhe), reconheci-me, definitivamente, como devoto admirador do autor de “Gringo Viego”. Conhecia já o escritor, faltava-me conhecer o homem.Agora, uma confissão. Não sou pessoa facilmente intimidável, muito pelo contrário, mas os meus primeiros contactos com Carlos Fuentes, em todo o caso sempre cordiais, como era lógico esperar de duas pessoas bem educadas, não foram fáceis, não por culpa dele, mas por uma espécie de resistência minha a aceitar com naturalidade o que em Carlos Fuentes era naturalíssimo, isto é, a sua forma de vestir. Todos sabemos que Fuentes veste bem, com elegância e bom gosto, a camisa sem uma ruga, as calças de vinco perfeito, mas, por ignotas razões, eu pensava que um escritor, especialmente se pertencia àquela parte do mundo, não deveria vestir assim. Engano meu. Afinal, Carlos Fuentes tornou compatível a maior exigência crítica, o maior rigor ético, que são os seus, com uma gravata bem escolhida. Não é pequena cousa, creiam-me.

Durante muitos anos Jorge Amado quis e soube ser a voz, o sentido e a alegria do Brasil. Poucas vezes um escritor terá conseguido tornar-se, tanto como ele, o espelho e o retrato de um povo inteiro. Uma parte importante do mundo leitor estrangeiro começou a conhecer o Brasil quando começou a ler Jorge Amado. E para muita gente foi uma surpresa descobrir nos livros de Jorge Amado, com a mais transparente das evidências, a complexa heterogeneidade, não só racial, mas cultural da sociedade brasileira. A generalizada e estereotipada visão de que o Brasil seria reduzível à soma mecânica das populações brancas, negras, mulatas e índias, perspectiva essa que, em todo o caso, já vinha sendo progressivamente corrigida, ainda de que de maneira desigual, pelas dinâmicas do desenvolvimento nos múltiplos sectores e actividades sociais do país, recebeu, com a obra de Jorge Amado, o mais solene e ao mesmo tempo aprazível desmentido. Não ignorávamos a emigração portuguesa histórica nem, em diferente escala e em épocas diferentes, a alemã e a italiana, mas foi Jorge Amado quem veio pôr-nos diante dos olhos o pouco que sabíamos sobre a matéria. O leque étnico que refrescava a terra brasileira era muito mais rico e diversificado do que as percepções europeias, sempre contaminadas pelos hábitos selectivos do colonialismo, pretendiam dar a entender: afinal, havia também que contar com a multidão de turcos, sírios, libaneses e tutti quanti que, a partir do século XIX e durante o século XX, praticamente até aos tempos actuais, tinham deixado os seus países de origem para entregar-se, em corpo e alma, às seduções, mas também aos perigos, do eldorado brasileiro. E também para que Jorge Amado lhes abrisse de par em par as portas dos seus livros.Tomo como exemplo do que venho dizendo um pequeno e delicioso livro cujo título – “A descoberta da América pelos turcos” – é capaz de mobilizar de imediato a atenção do mais apático dos leitores. Aí se vai contar, em princípio, a história de dois turcos, que não eram turcos, diz Jorge Amado, mas árabes, Raduan Murad e Jamil Bichara, que decidiram emigrar para a América à conquista de dinheiro e mulheres. Não tardou muito, porém, que a história, que parecia prometer unidade, se subdividisse em outras histórias em que entram dezenas de personagens, homens violentos, putanheiros e beberrões, mulheres tão sedentas de sexo como de felicidade doméstica, tudo isto no quadro distrital de Itabuna (Bahia), onde Jorge Amado (coincidência?) precisamente veio a nascer. Esta picaresca terra brasileira não é menos violenta que a ibérica. Estamos em terra de jagunços, de roças de cacau que eram minas de ouro, de brigas resolvidas a golpes de facão, de coronéis que exercem sem lei um poder que ninguém é capaz de compreender como foi que lhes chegou, de prostíbulos onde as prostitutas são disputadas como as mais puras das esposas. Esta gente não pensa mais que em fornicar, acumular dinheiro, amantes e bebedeiras. São carne para o Juízo Final, para a condenação eterna. E contudo…E, contudo, ao longo desta história turbulenta e de mau conselho, respira-se (perante o desconcerto do leitor) uma espécie de inocência, tão natural como o vento que sopra ou a água que corre, tão espontânea como a erva que nasceu depois da chuvada. Prodígio da arte de narrar, “A descoberta da América pelos turcos”, não obstante a sua brevidade quase esquemática e a sua aparente singeleza, merece ocupar um lugar ao lado dos grandes murais romanescos, como “Jubiabá”, ”A tenda dos milagres” ou “Terras do sem fim”. Diz-se que pelo dedo se conhece o gigante. Aí está, pois, o dedo do gigante, o dedo de Jorge Amado.